Sobre a Obra
Uma das pontes sinalizantes que comunica nossa intelectualidade com os acontecimentos do pensamento no século XX e com o grande pensador Martin Heidegger tem nome: Ernildo Jacob Stein. Nosso professor, e um dos nossos grandes exemplos de representação intelectual-acadêmica na formação do quadro filosófico brasilero, não poderia deixar de carregar latência em histórias de vida, nos acontecimentos de conquista e perseguimento de formação. E é exatamente isso que entrega a presente obra, a história que a carrega nos diz muito também sobre seu autor.
A coragem é, segundo Aristóteles, em um de seus ditames de cunho comum e de real conhecimento, o garantidor de todas as outras virtudes. Assim o é a vida de nosso professor Ernildo com os ditames de suas reviravoltas, sendo elas de ordem acadêmica, pelo fato de, talvez, ser um teuto-brasileiro perseguido pela ditadura militar brasileira como professor e que ao sair do Brasil se consagra no cochichar lancinante e presente na boca dos atentos estudiosos egressos das salas de universidades de filosofia do Brasil como o grande representante e lastro de toque-humano com os acontecimentos do pensamento do século XX. Stein é a figura representativa dessa coragem. Nessa aura, exata, que se conhece pelo peso o nome de algumas personalidades, está a dele. Pois nas referências que são direcionadas com o tom necessário para se compreender os enfrentamentos que desenham uma figura de reais contornos dados ao trabalho sobre si e aquilo que molda realmente na ordem dos acontecimentos, está a de nosso querido professor. Seu nome carrega esse peso, e sua figura representa um direcionamento àqueles que querem também assumir coragem nos problemas de ordem filosófica.
É assim que nasce a presente obra, carregada de um desenho sutil sobre o surgimento de nosso professor publicamente, ou como podemos, por vez, chamar “Apeiron”. É com esse pseudônimo que o ensaio sobre “O Transcendental e o Problema de Deus em Martin Heidegger”, promovido pela Divisão de Cultura da Secretaria da Educação e Cultura através de seu Instituto de Estudos Sociais e Filosóficos, sai em 29 de Janeiro de 1965.
A comissão julgadora entrega outros de alguns de nossos grandes nomes, entre eles o grande Gerd Bornheim, juntamente com Álvaro Magalhães e Delmar Schneider. E a conclusiva tarefa resulta de que “o primeiro prêmio coube ao Sr. Ernildo Stein que concorreu com um excelente trabalho que estudava o problema de Deus e o transcendental na obra de Martin Heidegger” (p. 57). Decidida pelo trabalho de nosso professor sobre o pseudônimo de Apeiron, pelo Vespertino Fôlha da tarde de 1965, Porto Alegre, “a comissão julgadora reconheceu a superioridade do trabalho do autor, sua maturidade filosófica e familiaridade com o mundo das ideias”, (Apud).
O autor reconhece em agradecimento o Diretório Acadêmico Pio XII da Faculdade de Caxias do Sul pelos encargos da edição da obra em questão no ano de 1966. E sobre um alto-encargo de honraria prestado na presente edição, minhas homenagens ao querido professor Ernildo Stein, que já professor em nossa Instituição Universidade de Caxias do Sul (UCS), nos honrou pelo exemplo intelectual e humano, sobre seus feitos e sobre o símbolo que nos presta enquanto figura e personalidade.
– ISAÍAS KLIPP
O TRANSCENDENTAL E O PROBLEMA DE DEUS EM MARTIN HEIDEGGER
POR ERNILDO STEIN
HEIDEGGER apresenta uma nova forma de filosofia transcendental. Ele coloca o problema transcendental no terreno da fenomenologia (1). Filosofia transcendental e fenomenologia podem ser confrontadas e entrar em diálogo, quando a esta se dá uma dimensão radical. Não sobre a fenomenologia no sentido vulgar, mas sobre o conceito fenomenológico de fenômeno cai a tônica. Nessa fenomenologia de sentido originário, a imediatidade do puro mostrar-se exige uma descoberta (Freile gung) pela qual o não-temático se mostra e revela como uma dimensão possibilitante. Esse elemento mais profundo representa um certo a priori fundante (2).
O sentido da fenomenologia, nesta perspectiva, pode ser levado a tal radicalidade que ela possibilita o desvelamento fenomenológico do próprio ser. Assim, Heidegger pode buscar sua ontologia fundamental numa inteira fidelidade ao método fenomenológico. Neste domínio da fenomenologia primordial, o próprio manifestar-se do fenômeno pode dar-se mesmo num movimento de velamento.
Atrás do ser do ente que se desvela, não é compreensível a existência de um outro ser, como coisa em si, escondido atrás de toda a fenomenalidade que escape ao método fenomenológico. Nada há velado atrás dos fenômenos que, de algum modo, não seja desvelável. Por isso, toda ontologia só é possível como fenomenologia.
Heidegger sugere toda uma gama de dissimulações e obstruções, criadas pelas diversas camadas culturais, que escondem o que se manifesta originariamente. É por isso que as coisas não são mais captadas assim como se manifestam. Heidegger prega uma revisão completa do aparelho conceitual da Filosofia Ocidental, pela sua Fenomenologia.
Neste contexto, situa Heidegger o problema do transcendental. Portanto, de maneira bem diversa se problematiza a questão, em se a comparando com o transcendental na tradição Metafísica.
“A palavra (transcendência) designa de um lado a ultrapassagem do ente para aquilo que, como ente, é em sua ‘quididade” (Washeit) (da qualificação). A ultrapassagem para a essência é a transcendência enquanto transcendental. Kant, limitando criticamente o ente ao objeto da existência, identificou o Transcendental com a objetividade do objeto. Transcendência significa, porém, ao mesmo tempo o transcendente, o qual, no sentido de fundamento primeiro existente do ente, ultrapassa a este enquanto existente e, dominando-o, perpassando-o com toda a plenitude do essencial. A ontologia representa a transcendência como o transcendental. A teologia representa a transcendência como o transcendente”. (3) (4)
“Na ultrapassagem transcendental-transcendente, o ser é apenas aflorado como representação. O pensamento ultrapassante pensa permanentemente o ser dele se desviando, não errando, mas não se adentrando no ser mesmo e na questionabilidade de sua verdade” (5).
Essas afirmações de Heidegger mostram seu modo de problematizar o transcendental da metafísica tradicional cuja dimensão onto-teológica implica no transcendente. A Ambivalência transcendental-transcendente faz com que a metafísica esqueça o ser. Ela leva a uma teologia da criatura e não a uma ontologia do ser do ente.
Na metafísica, o ser como transcendental perde seu conteúdo, por que este é atribuído a Deus que, como transcendente, é o analogante do qual participam os entes. O ser, radicalmente, é Deus, e os entes só são porque o abismo que os separa do ser é unido pela ponte da criação. Que seria aqui o ser como transcendental? Uma concretude comum aos entes unificando-os num parentesco ontológico? Ou seria um a priori lógico que o sujeito projeta como espaço concreto no qual entra em contato com os entes?
Nessa problemática, se insere a posição que Heidegger assume com sua ontologia fenomenológica-fundamental-transcendental. O transcendental toma nova força e conteúdo Pleno. Heidegger quer alcançar o ser como transcendental na imediatidade do seu mostrar-se fenomenológico no e ao Dasein. A dimensão transcendental não se abre aqui como um espaço racional no pensamento, que não cria o lugar privilegiado da manifestação o ser (6). O ser é a sua própria dimensão transcendental na qual se desvela e se esconde, no velamento e desvelamento dos entes. O ser se manifesta no sentido pré-racional da situação do Dasein. Nesse sentimento, planifica-se como presença.
Assim, Heidegger preserva o conteúdo do ser como transcendental. Vai mais além, colocando no ser como transcendental a própria fonte originante da possibilidade de transcendência do Dasein. O Dasein está condenado a colocar todo o seu conhecimento dos entes na dimensão transcendental porque a essência do Dasein é um dom do ser. É o próprio ser que se manifesta na essência do Dasein como um dom. Portanto é o próprio ser que se abre como transcendental no Dasein. Mas esse transcendental se manifesta na temporalidade e finitude porque ele abre seu domínio no próprio ser-para-a-morte. Dessa maneira, o auto-desvelar-se e auto-velar-se do ser no Dasein é fenomênico e finito.
Perde assim o ser o sentido transcendental intemporal conjugado com o transcendente da metafísica. É o ser mesmo que, no misterioso velamento e desvelamento, possibilita a diferença ontológica, e não um ente absoluto, intemporal. Deus, nessa perspectiva, é ente. É o mais ente de todos os entes. Ele surge, concretamente, no espaço puro e transcendental da verdade do ser, elemento primário, anterior a toda concreção e determinação entitativa. Deus se situa como ente entre os entes no horizonte transcendental, que é a direção para onde e de onde algo se faz compreensível no plano ôntico-empírico-histórico.
Confirmado o conteúdo do ser como transcendental, poderá Deus continuar como transcendente absoluto, sendo ente? Reduzido ao manifestar-se fenomênico no horizonte do ser para que possa ser conhecido, poderá Deus ser tematizado na Filosofia? Que dizer, sob essa perspectiva, da afirmação de Lauer: “Deus não se fenomeniza”? Ou seria o sagrado (elemento fenomenal) a dimensão condicionante da fenomenização de Deus? Seria, talvez, o sagrado o espaço possibilitante da comunicação entre os mortais e Deus? Em termos mais radicais: continuarão as categorias finito-infinito a ter algum sentido em tal problematização?
Na esfera desse perguntar, surge a intenção de nosso ensaio. Uma tensão progressiva leva Heidegger a avançar desde “Ser e Tempo”, sob uma mesma trilha inspiradora através de todos os seus escritos, para a determinação e desvelamento do ser cujo conteúdo se perdeu na História da Metafísica Ocidental. É uma busca da nova hegemonia do ser, que lhe dê seu pleno conteúdo de transcendental e faça dele o elemento determinante do pensar e existir históricos do Dasein.
Heidegger realiza esse caminho numa lenta evolução em que, no início, acena a primazia do Dasein, mas em que, com a “Introdução à Metafísica” (1935), brilha a hegemonia do ser.
Toda a interrogação posterior – no perscrutar a História da Filosofia para uma busca e uma “volta ao não pensado”, na exaltação da comunhão com o “Én Pánta” dos pré-socráticos, nas análises da obra de arte, da poesia e da linguagem, da coisa, enfim, na meditação do ser com História, como “Ereignis”, acontecimento-apropriação – é um esforço de captação do ser na transcendentalidade pura e plena, assim como o fôra antes do esquecimento.
Existirá um acesso a Deus dentro dessa nova posição transcendental na Filosofia? Qual a posição de Deus num pensamento que se lança no abismo de um perguntar “porque há o ente e não antes o nada”?
Eis o que se anuncia neste tempo em que “chegamos muito tarde para os deuses e muito cedo para o ser, cujo poema apenas iniciado é o homem” (7).
“PODEMOS ousar o passo de volta da Filosofia para dentro do pensamento do ser, logo que nos tornamos familiares na origem do pensamento” (8)
Superado o formalismo dos sistemas, a reflexão de Heidegger é o itinerante. Não se encastela em escola nem se fecha na concepção tradicional. É um pensamento a caminho… Avança no claro-escuro da interrogação e seus escritos são marcos à beira do caminho. Não trazem a luz meridiana das respostas estáticas formuladas como deduções mortas. Nem se perdem na tagarelice ontológica de quem acumula provas para a “sua verdade”. Para Heidegger, as provas fatigam a verdade.
Heidegger itinerante é um pensador errante. Alcança de errância em errância na história da filosofia, em busca do verdadeiro caminho para o ser.
Mas várias etapas percorridas, ele não encontrou verdades absolutas. Mas, até nos descaminhos havia manifestações do mesmo ser que se vela e desvela.
Por isso, pensaremos Heidegger em movimento. Os multidimensionais aspectos do filósofo mantém a rigorosa unidade de um caminho. Principalmente seu método fenomenológico cresce e se elabora com radical fidelidade.
Não ancoramos em posições fixas nem descobriremos um sistema rígido, mas nos defrontamos com um interrogar na mesma direção. Veremos como Heidegger pergunta em torno da questão decisiva na metafísica ocidental: a onto-teo-logia, o transcendental e o transcendente, o ser e Deus.
A precariedade do resultado não se comensura com a radicalidade do tema. Mas, talvez se justifique o trabalho, quando este tem apenas a pretensão de ser um saio. Como ensaio são mais as perguntas que suscita, que as respostas que traz. Perguntar, porém, é a marca essencial da abertura para o ser.
1- PARTE
O SER
“A história do ser não é nem a história do homem e da humanidade, nem a história da relação do homem com os entes e com o ser. A história do ser é o ser mesmo e só isso. Como, porém, o ser, para a fundação de sua verdade nos entes, toma em consideração o ser humano, fica o homem inserido na história do ser, mas sempre na perspectiva do modo como ele, a partir da relação do ser consigo e conforme essa relação, assume, perde, desconsidera, liberta, aprofunda ou dissipa a sua essência” (9).
1. TRANSCENDÊNCIA FINITA E COMPREENSÃO DO SER
A – O PROJETO DE “SER E TEMPO”
A partir de suas origens, o pensamento de Heidegger se movimenta pelo caminho da pergunta antiga, que se tornou a pergunta guia da Metafísica Ocidental, a partir de Aristóteles: Tí tó ón? Que é o ente? (10).
Mas, Heidegger a faz preceder da pergunta fundamental que foi esquecida, e sem a qual a pergunta guia não se responde: Que é o ser?
A natureza do ente, a determinação do ser do ente, será o centro de reflexão da ciência primeira que, para Aristóteles, jamais se configurou como ciência, no sentido clássico. Era simplesmente a “Episteme Zetoumene”, a ciência procurada. Antes que uma ciência, era uma dialética, desembocando nas aporias insuperáveis diante do “Tó ón légetai pollaohos” (11). Era a impossibilidade de conciliar a ciência do ente enquanto ente com a ciência do ser primeiro, a teologia, única ciência possível, pois só há ciência do necessário. Mas, mesmo o ideal teológico é impossível de ser concretizado, pois vivemos num mundo contingente, submetido ao tempo e ao movimento, e as categorias deste mundo não se aplicam ao ser imóvel e separado. Diante do ideal inacessível da teologia e do ideal inacabável da ontologia, o discurso humano, disperso e aporético, se reconciliará com os estudos da forma sublunar do ser, que são os entes, e que estão radicalmente divididos pelo movimento. Assim, a ontologia real de Aristóteles não se apresenta como uma metafísica geral, mas como uma metafísica especial do ente mutável do mundo sublunar. Ela é, de certo modo, o substituto humano de uma teologia inacessível, e é a física como a verdade da metafísica. As aporias do discurso sobre o ser se tornam a expressão fiel da contingência ontológica do ser. Diante da multiplicidade dos entes, a metafísica de Aristóteles é uma metafísica do inacabado (a simples enumeração e a não delimitação taxativa das categorias o comprova), é, de certo modo, a metafísica, do homem em sua finitude. O esforço de Aristóteles para colocar o fundamento da Metafísica no mundo supra sensível, separado e imóvel, intemporal, levou-o a essas aporias que lhe terão dado o sentido do fracasso, caso não tiver tido consciência de que as aporias são o próprio sentido do filosofar na finitude.
O decisivo para Heidegger não são os caminhos da metafísica ocidental e, sim, a pergunta que ele escuta desde o ventre das aporias, a partir de Aristóteles, neste esforço de ancorar a multiplicidade no supra sensível, de fundamental uma ontologia numa impossível teologia. Se o ente se predica de muitos modos, é essencial a pergunta pela unidade da qual brotam a multiplicidade significativa do ser. A pergunta pela unidade do ser, na multiplicidade de seus sentidos, é o acicate [espora de ponta única] que conduz Heidegger na sua interrogação.
A pergunta pelo ser do ente é simplesmente a pergunta-guia; mas aquela que interroga pelo sentido do ser mesmo, é a pergunta-fundamental.
A problematização deve ser feita em torno da unidade da qual brota a multiplicidade. É a pergunta pelo sentido do ser ensaiada em “SZ”. Na tradição, o ser que permite a multiplicidade é presença que presentifica o presente no tempo. Assim, a metafísica, de modo oculto, acena para a questão: “Não pertence o tempo essencialmente a unidade do ser?”. Não no intemporal paira a unidade do ser, mas no horizonte da temporalidade.
Desse modo, a pergunta pelo ser se converte em pergunta pelo ser e tempo. Que significamos com a pergunta pelo ente? Que entende a Metafísica quando diz “é”? Não pensa ela, com demasiada facilidade, o ser como presença, esquecendo, porém, o tempo que permite pensar a presença? Não esqueceu o pensamento tradicional, quando pensa o ser do ente, o fundamento: o sentido do ser ao qual pertence o tempo?
Nas duas secções de “Ser e Tempo” que apareceram, Heidegger procura interpretar, a partir da temporalidade, aquele ente que se caracteriza pela compreensão do ser: o Dasein.
“A partir da temporalidade e historicidade do Dasein que compreende o ser, queria Heidegger fazer do tempo, que pertence ao sentido do ser, o objeto do pensamento. Desde a temporalidade do Dasein, a compreensão do caráter temporal daquele horizonte transcendental, no qual o ser se desmembra na multiplicidade de seus sentidos, deveria ser procurada na terceira secção do “SZ” (12).
O que significa para o sentido do ser em si mesmo que um ente temporal a pergunta pelo ser? Eis a síntese da problemática de SZ. Mas ela pressupõe outra interrogação: que relação existe entre a finitude do Dasein e a compreensão do ser? Qual a relação que há entre transcendência finita e o ser como transcendental?
Aqui se apresenta a primeira tarefa. Análise do problema da transcendência finita ou da compreensão temporal do ser, a partir das obras que sucedem imediatamente a “Ser e Tempo”.
A terceira secção de “Ser e Tempo” seria a abertura do quadro ontológico em que situar-se-iam todas as análises das duas secções publicadas e intitular-se “Zeit und Sein”. Nela, dever-se-ia dar uma “explicação original do tempo como horizonte da compreensão do Ser” (13).
Tempo original e ser em geral seriam examinados em mútuo relacionamento. Realmente, “SZ” não se compreende sem a visualização ontológica que seria dada na terceira secção. Isso mostra a necessidade de uma ontologia, que Heidegger tinha e tem como projeto. E porque este silêncio do filósofo? Se foi possível uma analítica existencial, na linguagem da filosofia reinante, não é possível a elaboração de uma ontologia difícil como tarefa para um homem, se confunde com a própria tarefa de construir uma nova ontologia. O silêncio não é, portanto, uma confissão de fracasso, mas a prudência de quem não quer, pela pressa, comprometer o encontro da nova ontologia.
A busca contínua nas obras posteriores, que vamos examinar em sua evolução. “Kant e o problema da Metafísica”, “Da Essência do Fundamento”, “Que é a Metafísica?” e a “Essência da Verdade” constituem os primeiros textos que seguem SZ e que, além da unidade cronológica, mantém uma unidade temática, de conteúdo. Mas, nelas já se verifica uma gradual mudança na relação do homem com o ser; uma passagem da transcendência finita para o transcendental , como passo gradual da analítica existencial para o esboço; uma lenta recuperação do sentido originário do ser.
B – TRANSCENDÊNCIA E TEMPORALIDADE
Em KM, que surgiu numa tentativa de elaboração da primeira secção da segunda parte de SZ, Heidegger continua a busca de uma ontologia fundamental, através de uma analítica existencial que possibilite a pergunta pelo ser. Ele vê em Kant, não apenas uma crítica do conhecimento do fundamento da ontologia. “Kant não procuraria só mostrar as condições de possibilidade do conhecimento humano, mas onde, como e porque surge a metafísica que pertence à natureza humana”. Segundo Heidegger, Kant teria projetado fundamentar a metafísica pela analítica do homem, mas do homem em seu conhecimento.
Kant perguntava pela possibilidade dos juízos sintéticos a priori, que são a condição de possibilidade de toda experiência. Enquanto esses juízos são supostos de todo conhecimento ôntico, eles formam o conhecimento ontológico puro, não-empírico.
O conhecimento é, para Heidegger, a compreensão pré-ontológica do ser, agora caracterizado como transcendência – que em SZ apareceu procedendo e possibilitando todo encontro ôntico com os entes. Assim, para Kant e para Heidegger, o problema da fundamentação da metafísica é o problema da pré-compreensão do ser, isto é, da transcendência, graças a qual o homem compreende o ser do ente, antes de toda experiência. O problema da transcendência é, ao mesmo tempo, o problema da finitude pois o conhecimento humano é finito.
Como pode o homem compreender a priori o ente em seu ser, antes de qualquer encontro com o ente? Qual deve ser a estrutura do homem para que esteja aberto a compreensão do ser do ente?
Kant resolve o problema pela dedução dos juízos sintéticos a priori da imaginação transcendental. Ela possibilita o conhecimento ontológico, tornando possíveis os juízos sintéticos a priori pelos esquemas que são determinações a priori do tempo.
Heidegger se fixa nessa conclusão de Kant para ressaltar o papel do tempo. Se esses esquemas da imaginação transcendental são determinações temporais, então a imaginação transcendental tem um caráter temporal interior. Ela é, como fundamento possibilitante da tríplice síntese pura, o próprio tempo originário, que corresponde à temporalidade do Dasein analisado em SZ. Com isso, é afirmado que o fundamento da possibilidade do conhecimento ontológico, isto é, da transcendência finita, é o tempo originário ou a temporalidade do Dasein. Graças à sua temporalidade, pode o Dasein projetar o ente para o ser; fundado na sua tridimensional estrutura interior temporal, pode o Dasein compreender o ser e, através dele, o ente. A temporalidade é a condição de possibilidade para captar o ente através do ser. O homem pode ser transcendência finita porque existe como temporalidade (14).
A necessidade que tem o ente finito de projetar, previamente, o ser como horizonte, no qual conhece o ente, é um signo de finitude. Portanto, a compreensão do ser não é um privilégio do homem, mas antes a expressão da sua indigência transcendental. A finitude do Dasein significa que ele só pode conhecer o ente de modo indireto. “O Homem não pode, mas deve compreender o ser a priori para poder conhecer o ente”.
Assim, a compreensão do ser está ligada à finitude. Ela é a própria essência da finitude. O homem compreende o ser porque é finito. Essa finitude se embasa na tríplice estrutura do Dasein: o já-estar-em; o estar-com e o “pré-ser-se” (15).
Desse modo, Heidegger continua, em KM, a preocupação de SZ, mas já apresenta um avanço na direção do ser como transcendental, apesar de a tônica ainda cair sobre a transcendência do Dasein.
Em KM, manifesta-se a relação que existe entre finitude e compreensão do ser. A compreensão do ser só se realiza com relação à finitude e vice-versa. São dois aspectos da estrutura radical do Dasein: a temporalidade.
Mas, há aqui como que uma hegemonia do Dasein – como transcendência finita – sobre o ser. Este realmente aparece como exigência pré-ontológica, mas com um sentido muito diluído. Só nos textos seguintes começa o movimento decisivo para uma afirmação do ser como transcendental que possibilita a própria manifestação do Dasein como finitude e condiciona, como espaço transcendental, a própria colocação do problema do ser por parte do Dasein. Mas, finitude do Dasein e, portanto, a compreensão finita do ser, sempre continuarão em evidência.
C – O SER COMO HORIZONTE DA TRANSCENDÊNCIA
Que significa para a questão do ser ou existir na finitude e na dimensão temporal daquele que por ele interroga? Nos quatro textos que seguiram a SZ, vai-se esboçando a resposta numa mudança de direção da transcendência do Dasein para o horizonte possibilitante dessa transcendência, a qual se esboça coativamente como o transcendental. É uma mudança de perspectiva que avança na direção do ser. A tematização do horizonte será elemento decisivo para a demarcação do transcendental na significação heideggeriana.
O que é este horizonte que possibilita a compreensão dos entes como tais? O ser se apresenta como e para-onde e o de-onde da transcendência, e se abre como o espaço que permite a manifestação dos entes no Dasein e para o Dasein. É claro queu esse horizonte não pode ser um ente. “Um nada, isto é, não um ente e, contudo, “algo!”. (16). Em WM, Heidegger desenvolve o horizonte como um nada. “O nada é a possibilitação do revelar-se do ente como tal para o Dasein humano” (17).
Mas ser e nada não se identificam. Não obstante, na experiência radical do sentimento de situação em que surge a angústia, o homem experimenta os entes caírem no nada, e essa inconsistência dada pela queda faz com que surja a pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como tal, pois que os entes, ao tomarem no nada, pela angústia, com o nada se identificam. Assim, o nada é que manifesta a labilidade dos entes, e é, então, a antecâmara do ser. O nada é, pois, o véu do ser.
Podemos determinar no ser – como horizonte não entitativo dos entes – alguns caracteres importantes para a problemática do transcendental. Na abordagem ôntica dos entes, o ser não é analisado tematicamente. É enfocado “exercite sed non signate”. Como horizonte, ele não é tematizado, pois, assim, terminaria sendo um ente. A impossibilidade de uma tematização entitativa vai marcar o transcendental heideggeriano. O ser é atingido numa compreensão pré-conceitual, sendo como tal inconceitualizável. Como inconceitual e não tematizado, o transcendental é, sob certo aspecto, inquestionável e evidente. Por ser simples, ele tende ao esquecimento e nele pode cair.
O ser afinal se apresenta como fenômeno finito. Dois motivos ressaltam imediatamente dos textos. O ser se manifesta pelo desvio do nada no sentimento de angústia; e é pensado fenomenologicamente, a partir do seu aparecer no ente no e pelo Dasein. Ele só se manifesta na transcendência do Dasein que ele mesmo condiciona. Desse modo, o ser está ligado também à estrutura temporal finita deste ente. Como transcendental, só aparece finitamente. Acentua-se, dessa forma, a dimensão fenomenológica do transcendental.
A estrutura formal da transcendência vem detalhada em “A Essência do Fundamento”, onde Heidegger lhe dá o sentido de ultrapassagem. O Dasein realiza a ultrapassagem, sendo o ente o ultrapassado. O “para-onde” o Dasein ultrapassa o ente, não é o ser, mas o mundo. “Nós designamos aquilo para onde o Dasein como tal transcende, o mundo, e determinamos agora a transcendência como estar-no-mundo” (18). O mundo pertence à estrutura existencial do Dasein, como a totalidade pré-compreendida dos entes, enquanto são pensados a partir desse mesmo Dasein, e como pertencentes à sua estrutura.
Mundo e ser pertencem ao horizonte da transcendência. Em WG, o mundo é horizonte no qual o ser é compreendido, pois “o projeto do mundo possibilita (…) a prévia compreensão do ser do ente”. Entretanto, não foi bem delineada a relação mundo-ser. Até hoje, WG permanece como um ponto sombrio e nebuloso na contextura da obra de Heidegger.
O ser sempre está ligado a um mundo, e o mundo sempre é um mundo determinado, porque é o mundo de um determinado Dasein. Desse modo, o ser só aparece de modo determinante e limitado, manifestando-se como finito. Nesse enfoque, o ser como transcendental se perde num nevoeiro pardacento de reflexões que nada iluminam (19).
Já em “A Essência do Fundamento”, o horizonte da transcendência figura na tessitura de uma nova colocação da questão da verdade: o aberto. O ser recebe uma nova determinação a partir da análise da palavra grega “Alétheia”, como desvelamento em seu sentido originário. O ser originariamente desvelado, como horizonte da transcendência, é a raiz última pela qual se manifesta o ente ao Dasein. Mas, no manifestar-se dos entes, o originariamente desvelado (o ser) se vela. O ser, então, entra numa ambivalência radical de velamento e des-velamento.
A verdade em si mesma é velamento e desvelamento, sendo espaço para a manifestação do ente e, ao mesmo tempo, mistério que se esconde. É um modo positivo-negativo de o ser como verdade patentear-se e mostrar-se de modo finito. É como horizonte da manifestação de todo ente que ser e verdade se conjugam numa unidade.
A categoria do aberto, como espaço condicionante, vai mostrar-se elemento determinante na gênese e desenvolvimento do problema transcendental em Heidegger.
(Também em WW, o transcendental manifesta-se como finito).
A compreensão do ser se dá no Dasein finito e temporal. M. Heidegger o diz nos escritos rapidamente examinados. Em KM, o ser como condição pré-ontológica para o conhecimento dos entes está sujeito à temporalidade. Em WM, o ser surge no horizonte do nada de modo não entitativo e está ligado ao Dasein finito que experimenta a angústia. Em WG, o ser se manifesta no mundo determinado de cada Dasein finito, assim como em WW o ser surge na ambivalência positivo-negativa da verdade como velamento e des-velamento.
Irresistivelmente, parece impor-se a constatação: o ser é finito. Mas, é aplicável ao ser a categoria de finito? Não é incompatível com o conceito de horizonte de Heidegger? Não implicaria a consciência de limite uma presença de não-limite? Não constitui paradoxo dizer-se transcendental finito?
Realmente, os conceitos finito e infinito não são adequados para referências no sentido heideggeriano, pois são categorias tomadas do mundo ôntico. E o ser, radicalmente, não “é”. Dizer que ele é seria ir contra a evidência primeira: o ser não é ente.
Em torno do problema, Heidegger assim se expressou: “sí, aunque diría que es (el ser) finito. Todo depende de cómo se entiende el concepto de ‘finito’. Lo entiendo, no como opuesto a infinito, sino en sentido griego, como cerrado en sí mismo, como aquello por lo cual se diferencia de lo otro” (20).
Talvez o melhor modo de coordenar o problema seja este: O ser, como horizonte da transcendência humana, dura como finito, manifestar-se no mundo finito do Dasein, mostrar-se ao homem, não apenas na pura positividade, mas velando-se e desvelando-se. Desse modo, o ser dura como finito. Não é outra a resposta à questão colocada no início: que significa para o problema do ser que por ele pergunte um ser-para-a-morte? Na verdade, quando falamos em ser finito, significamos este durar fenômeno para o Dasein e no Dasein finito. Mas, a resposta plena nos virá mais adiante, na análise de uma mudança de direção do pensamento de Heidegger em que assume plena hegemonia o ser como transcendental.
2. DA TRANSCENDÊNCIA PARA O TRANSCENDENTAL
A. A “KEHRE”
Heidegger reconhece que a não elaboração da terceira secção de SZ fez com que se tornasse mais difícil acompanhar o seu esforço de pensar fora da subjetividade. Em sua Carta Sobre o Humanismo ele afirma: “Aqui o todo se inverte. (21) A secção em questão foi retida, porque o pensamento falhou no dizer suficiente desta “Kehre” (22) 4 porque não teve sucesso com o auxílio da linguagem de metafísica. A conferência “Sobre a Essência da Verdade” que pensada e transmitida em 1930, mas apenas publicada em 1943, dá uma certa visão para dentro do pensamento desta “Kehre” de “Ser e Tempo” para “Tempo e Ser”.
Este foi o primeiro aceno de Heidegger a uma volta em seu caminho e que vem tão discutido atualmente. Referindo-se a esta passagem Heidegger diz: “O pensamento da “Kehre” é uma volta em meu pensamento. Mas esta volta não é consequência que se baseia na mudança de meu ponto de vista ou a renúncia da problematização de “ST”. O pensamento da “Kehre” se demonstra por isso que eu permaneci junto a tarefa do pensamento de “ST”, quer dizer, que perguntei naquela direção que sob o título “Tempo e Ser” vinha indicada já em “Ser e Tempo”.
A “Kehre’ não é em primeira linha um processo do pensamento interrogador; ela pertence à situação da questão mesma significada pelo título “Ser e Tempo”, “Tempo e Ser” (23).
Destas referências à “Kehre” os estudiosos querem ver no pensamento de Heidegger uma mudança de direção, uma viragem, um acentuar uma nova dimensão, mas sempre sobre o mesmo chão inspirador. Esta volta se daria numa total fidelidade a ST.
Podemos afirmar que não se trata de uma conversão no pensamento, de um processo repentino de mudança na reflexão, mas de um processo que emerge lentamente e já condiciona a reflexão de muitos anos. É uma mudança difícil de ser nuançada e que exige abordagem a partir de diversas direções. Nela de certo modo o homem está em questão. O homem na sua relação fundamental com o ser, o que na “Kehre”, poderá significar o ser e sua verdade em sua relação com o homem.
Esta “Kehre” seria uma viragem “do nada para o ser” (24) ou uma mudança da hegemonia do Dasein para o ser (25). Em última análise, os autores concordam em que a “Kehre” tem sentido de avanço para a determinação mais explícita do ser como transcendental. O pensamento de Heidegger seria um caminho da transcendência do Dasein para a transcendentalidade do ser, chegando este, explicitamente, à hegemonia definitiva depois da “Introdução à Metafísica” (26).
É interessante observar como, no início, a diferença ontológica radica na transcendência e como, mais tarde, a transcendência se insere no acontecer originário da diferença ontológica. Talvez, nessa mudança, que se insinua em sua obra, radique o sentido último da… “Kehre”.
Realizou, portanto, Heidegger, uma guinada decisiva na problemática do ser, um movimento que passa da primazia do homem para a primazia do ser. Progressivamente, avança esse desvio, essa viragem, desde a aparição de SZ em que, como em KM, a transcendência do homem tem a primazia, enquanto o ser como horizonte transcendental da transcendência quase não figura tematicamente. Em WG, já aparece um aceno para o mundo como horizonte da transcendência. Em WM, é tematizado o horizonte como o nada. Em WW, o aberto, como verdade originária, assume o centro da reflexão.
“Este desenvolvimento não é de todo inesperado, pois a pergunta pelo ser foi, desde o início, o ‘leitmotiv’ do esforço de Heidegger. Assim, poder-se-ia pensar, porventura, que, com isso, Heidegger alcançará sua meta colocada origináriamente e que, agora, ele considera diretamente o que antes só vira indiretamente e à distância. Mas o desenvolvimento é mais complicado: não é apenas uma viragem do olhar do Dasein para o ser, mas uma transformação concomitante nos papéis ontológicos de ser e do Dasein” (27).
Depois a primazia do ser. Em WM, apesar de o ser ainda necessitar do Dasein para se manifestar no seu desvelar-se fenomênico, ele se torna sempre mais determinante da estrutura da transcendência do Dasein enquanto transcendental. No prefácio, surgindo alguns anos mais tarde, Heidegger desfaz todas as dúvidas: “O ser não é criação do pensamento. Pelo contrário, o pensar essencial é um acontecimento-apropriação do ser” (28). Mesmo a liberdade “brota da essência originária da verdade” (29).
Assim, Heidegger realizou a “Kehre” de sua posição. A mudança da relação com o ser (30) será cada vez mais caracterizada, à medida que aparecem as suas obras posteriores, nas quais o ser como transcendental reina o pleno meio-dia.
B – A DELIMITAÇÃO DA “KEHRE”
A “Kehre”, além de uma mudança na visualização da relação Dasein-ser, constitui uma abertura para o novo caminho sobre o mesmo solo inspirador do primigenio pensar de Heidegger, seminalmente imerso em SZ, na busca pelo sentido do ser. O interrogar itinerante de Heidegger, após os quatro textos que se seguiram a SZ, nos quais se processou a evolução examinada, agora parte do ser. É uma nova perspectiva, resultada da hegemonia do ser como transcendental sobre a transcendência do Dasein.
“Por que há o ente em geral e não, antes, o nada?”. É a pergunta radicalizante que abre as páginas da “Introdução à Metafísica”, livro que marca com segurança uma data definitiva, 1935, para o estabelecimento da “Kehre”. Heidegger delimita mais a pergunta pelo ser, colocando-a como pergunta fundamental. Essa pergunta se abre em duas dimensões: busca uma superação da metafísica ocidental, na qual o ser foi dado ao esquecimento, e ensaia novas prospecções a partir das origens do filosofar do pensamento ocidental.
Heidegger mostra como a pergunta pelo ser na metafísica foi substituída pela pergunta pelos entes. Por isso, exige, uma reinterpretação da questão do ser, questão essa que já em SZ toma novas perspectivas quando lá se fala em “horizonte transcendental”, não no sentido da consciência subjetiva à maneira de Kant.
“A questão do ser designa na interpretação corrente: Perguntar pelo ente enquanto tal (Metafísica). A questão do ser designa, quando pensada a partir de SZ: perguntar pelo ser enquanto tal. Essa significação do título é real e verbalmente adequada. Pois a questão do ser, no sentido de pergunta metafísica pelo ente, não realiza a interrogação temática pelo ser. Este é esquecido”. (31).
É assim que se poderia dizer que o próprio título do livro é dúbio. Não é uma introdução à metafísica tradicional, mas à nova metafísica, que é pensamento do ser e não do ente. Talvez melhor título seria: “Introdução ao pensamento do ser” (32). Heidegger mesmo o sugere: “A pergunta fundamental dessa preleção é de outra espécie que a pergunta guia da metafísica. Revelação significa: abertura daquilo que o esquecimento do ser fecha e esconde”. Por este interrogar, desce também uma luz sobre a essência da metafísica, até agora co-escondida” (33).
“Introdução à Metafísica” significa, conforme isso, conduzir para dentro da questão da pergunta fundamental (34).
“Introdução à Metafísica” significa, conforme isso, conduzir para dentro da questão da pergunta fundamental (34).Heidegger acusa a metafísica ocidental de jamais ter abordado explícita e tematicamente o ser. Desde sempre, a metafísica se movimenta no domínio da diferença ontológica, sem experimentar essa diferença e sem interrogar em torno dela.
Mas, ao mesmo tempo que critica a metafísica tradicional, que olvidou a questão do ser, Heidegger insiste em uma volta aos filósofos que antecederam a Sócrates. Além do esforço por eliminar a tradição socrática, post-socrática e cristã, que impede o regresso ao passado helênico dos pré-socráticos, Heidegger volta a esses, porque foi neles que o ser brilhou pela primeira vez, na idade trágica dos gregos.
A originalidade destes filósofos, em sua relação com o ser, está em sua situação no estado anterior à cisão entre ser e pensar, aquém da divisão sujeito e objeto que vicia toda a metafísica, desde Platão e Aristóteles até Nietzsche. A consequência dessa cisão foi o domínio do pensamento e a hipertrofia do lógico. Na metafísica dominada pela lógica, o ser recebe suas determinações, sua interpretação, sua própria possibilidade, do pensamento. Heidegger quer superar esse predomínio do pensamento lógico e levar esse mesmo pensamento a ser determinado pelo ser, como pertencente ao ser.
É esse o motivo que o leva aos pré-socráticos. Ele pergunta por aquilo que entendiam quando eles afirmavam o “ser”. E constata que, para aqueles que viviam na situação anterior à cisão entre pensar e ser, o ser era: “Physis, ousía, logos, pólemos, noein-einái, deinón, díke” (35). O exame minucioso da gênese etimológica, filosófica e histórico-semântica dessas palavras guias, que dizem muito mais isoladas do que em frases e em livros, leva Heidegger a determinar, com riqueza de detalhes, o aprofundamento do ser.
Todas as palavras guias que serviram aos pré-socráticos para designação do ser, leva Heidegger a determinar o ser como transcendental, não no sentido subjetivo, mas como possibilitante a ele mesmo constituindo a esfera pré-ontológica, o domínio pré-objetivo e o pré-subjetivo em que nascem os entes em seu aparecer.
Apesar de adensado o sentido do ser, ele permanece nessa obra, de certo modo, o mesmo das obras anteriores. Não obstante a ampliação do seu significado, o ser ainda continua aquilo “por força do qual o ente se torna observável” (36), “aquilo a cuja essência pertence a verdade dos entes, o desvelamento” (37), “que se chama vir ao desvelamento” (38) e muitos outros nomes quais é designado em escritos anteriores.
O ser continua ainda como horizonte da transcendência humana, mas agora ele assume um rigor transcendental. Tudo é pensado a partir dele. O ser é o espaço possibilitante da história, da técnica, da obra de arte e do surgimento do próprio homem (39).
Desse modo é estabelecida, definitivamente, a hegemonia do ser sobre o homem. Mas, o ser não aparece como objeto que se opõe ao homem enquanto sujeito; sem isso, negar-se-ia, justamente, o ser que Heidegger pensa como diferença dos entes anteriores à cisão sujeito-objeto.
“Também nos escritos surgidos após a ‘Kehre”, fica estabelecido que o ser não é ente, mas justamente aquilo que dura e domina em todo o ente, sem ser ele mesmo um ente e sem reduzir-se ao seu próprio dominar e durar. Precisamente para conservar esse caráter inefável do ser, é que Heidegger salientou o impulso do misterioso velar-se do ser no desvelar-se dos entes. O ser acontece justamente quando se retira, Nós só o compreendemos quando o reconhecemos como incompreensível” (41).
Depois da “Kehre”, o homem permanece o Dasein. Mas Heidegger quer ressaltar a hegemonia do ser como transcendental e, por isso, aponta a uma nova dimensão que desvenda mais a misteriosa relação do ser com o Dasein. Heidegger, agora, passa a escrever o Da-sein. Chama assim a atenção de que Da-sein e homem não se identificam simplesmente. O Da-sein agora é o fundamento que embasa e possibilita a abertura do homem para o ser dos entes. Como tal, ele (o Da) é mais originário que o homem, ele o possui. Da-sein, então é agora ligar no homem onde o ser mesmo dele se aproxima, onde ele em si mesmo encontra o ser. Da-sein é o próprio ser enquanto no homem encontra a sua clareira (Lichtung). É tanto o homem enquanto o “Da” do ser, como o ser mesmo enquanto “ser-no-homem” (42).
Heidegger agora, em certo sentido, alarga e aprofunda a dimensão do homem, fazendo-o depender, na sua transcendência, do ser como transcendental, colocando-o a serviço do ser que nele e para ele se vela e des-vela na finitude e no tempo.
Em EM, Heidegger mostra como desde os primórdios a definição do homem a partir do ser foi-se esvaziando, permanecendo, na atual definição aristotélica de homem como animal racional, apenas o domínio do humano, utilizado o logos como instrumento.
“O fim se mostra na fórmula: Ánthropos zoom lógon échon; homem, o animal que tem a razão como instrumento. O começo, encerramos em uma fórmula livremente formulada que, ao mesmo tempo, reúne a explicação até aqui dada: Physis – lógon ánthropos échon: o ser, o fenômeno dominante, urge o recolhimento, que contém em si o ser-homem e o fundamenta” (43).
O que até agora se nos figurou a respeito da nova relação entre o ser e Dasein, mostra em definitivo que Heidegger superou, num retorno e num adentramento, o esquema sujeito-objeto e re-toma a pergunta pelo ser na própria dimensão do ser como transcendental. (44).
C. – REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A “KEHRE”
Tendo acompanhado a peregrinação do pensamento de Heidegger desde sua inspiração originária, através da “Kehre”, e seu estabelecimento definitivo, lancemos um olhar retrospectivo sobre o caminho Que significa essa volta do Dasein ao ser? Uma mudança de direção do sujeito ao objeto? Um rompimento do subjetivismo? Que relação existe entre a posição de Heidegger, após a “Kehre”, e a questão transcendental? Há coerência entre esta posição e a anterior?
Heidegger não é subjetivista nem objetivista. Por isso, a volta do Dasein ao ser não é fuga e rejeição do subjetivismo. O sujeito que se criaria a realidade que conhece, é impossível na filosofia de Heidegger. Nem é uma inclinação ao objeto. Heidegger busca o ser como transcendental que precede a relação sujeito-objeto. Para ele, o ser é radicalmente ante-predicativo e condiciona a predicação.
As acusações a ele feitas, só para citarmos um exemplo, por motivo de afirmação: “Só enquanto há Dasein, há ser” (45), mostram compreensão superficial do pensamento de Heidegger. Roger Munier assim comenta essa passagem: “Il n’u a d’Être que pour autant qu’est l’Être lá. Ence point se noue une dialectique des rapports réciproques entre l’Être et l’essence de l’homme, qui est probablement l’articulation la plus délicate de la pensée heideggerienne. Cette proposition controversée ne signifie pas que l’Être en son essence dépende de l’homme, soit un produit de l’esprit fini, mais elle rappelle qu’il ne saurait se dévoiler, se produire comme éclaircie que si l’homme répond à son appel dans l’existence extatique” (46).
[Roger Munier assim comenta essa passagem: “Não há Ser a não ser na medida em que o Ser está lá. Neste ponto, ocorre uma dialética das relações recíprocas entre o Ser e a essência do homem, que é provavelmente a articulação mais delicada do pensamento heideggeriano. Essa proposição controversa não significa que o Ser em sua essência depende do homem, seja um produto da mente finita, mas ela lembra que o Ser não pode se revelar, se manifestar como clareira, a menos que o homem responda ao seu chamado na existência extática.”]
O Dasein apenas compreende os entes, não os faz surgir; tem-nos à sua frente e não os suscita em sua presença.
Não se trata em Heidegger do encontro ôntico ou empírico entre o homem que conhece e o ente que é conhecido. É na busca de uma dimensão pré-ôntica e pré-empírica que Heidegger põe o problema. Ele se movimenta em toda a “Kehre” no plano transcendental. Antes da “Kehre”, pensa-se a partir do homem, depois dela, a partir do ser, mas, em ambas as situações, dentro da dimensão transcendental.
Heidegger, fiel às suas inspirações originárias, supera a posição transcendental de Kant e elabora a nova posição. Substitui a subjetividade transcendental, confirmando-se como a questão transcendental do ser. “A postura de Heidegger não é kantiana, porque dela nasceu uma filosofia do ser e em Kant esta é impossível”.
Mas, apesar disso: “Antes de tudo, a questão transcendental de Kant está tão essencialmente na base do pensamento de Heidegger, que só a partir dela pode ele ser entendido, de modo concreto, na postura de seu problema. Ao mesmo tempo, a posição da questão transcendental avança de tal modo para além de Kant que justamente nisto se realiza uma profunda diferença com Kant… e com toda a ‘metafísica’ da subjetividade: do pensamento ocidental” (47).
A superação do subjetivismo transcendental, por parte de Heidegger, também se evidencia na crítica radical que encetou contra a subjetividade transcendental de Husserl. Heidegger apontou com insistência a ausência de substrato ontológico da subjetividade transcendental no pensamento de Husserl.
Hans Gadamer afirma: “As tarefas que, desde o ponto de partida, jaziam em SZ eram: colocar a crítica radical de Nietzsche ao platonismo no vértice da tradição por ele criticada; ir ao encontro da metafísica ocidental em seu próprio nível; reconhecer e superar a construção interrogativa transcendental como consequência do moderno subjetivismo” (48).
Não houve portanto uma “revolução copernicana” no caminho filosófico de Heidegger. Sua ascensão para a nova dimensão transcendental foi uma lenta peregrinação por “caminhos do bosque”, que vinham desde SZ.
Heidegger pessoalmente confessa que o caminho de seu pensamento não estava determinado e que não podia prever aonde levaria seu ponto de partida: “Entretanto, fez-se sentir a tentativa de andar um caminho, no qual eu não sabia para onde conduziria. Só me eram conhecidas as perspectivas mais próximas, porque incessantemente me atraiam, ainda que o horizonte repetidas vezes se afastasse e se cobrisse de sombras” (49).
3 – UM PENSAMENTO COMANDADO PELO SER
Realizado o movimento da Kehre, Heidegger, fiel à sua determinação de perguntar pelo sentido do ser, interroga por aquilo que realmente entendemos quando dizemos “ser”. Essa busca é sempre feita no plano transcendental, mas através do método fenomenológico. Já que Heidegger pergunta pelo ser, como fenômeno global que se vela e desvela ao e no Dasein, manifestando-se nos entes. A hegemonia do ser comanda todas as buscas. Aquilo que se estabeleceu definitivamente em EM perpassa na metafísica ocidental; a volta aos pré-socráticos, as análises da obra de arte, da poesia, da linguagem, da essência da coisa, recebe seu dinamismo da decisão de determinar o ser como transcendental.
Os escritos posteriores a 1935 assumem, nessa perspectiva, clareza, transparência e unidade em meio às múltiplas direções aparentes.
Dessa maneira, podemos ordenar grande parte da reflexão de Heidegger, após a determinação da “Kehre”, como um trabalho em busca das instâncias privilegiadas, dos momentos de radicalidade em que o ser se revela, como aos pré-socráticos.
1. História da metafísica ocidental
a. ) Interpretação dos pré-socráticos: “Introdução à Metafísica” … (1935); no livro “Ensaios e Conferências”, os seguintes estudos: “Logos” (1951), “Moira” (1954), “Alétheia” (1943); no livro “Sendas Perdidas”, o ensaio “O dito de Anaximandro’ (1946) e muitas referências esparsas em outros textos.
b.) Platão: “A doutrina de Platão sobre a verdade” (1943).
c.) Aristóteles; “Essência e conceito de Physis”, publicado na revista “Il Pensiero” (1958).
d.) Leibniz: “O princípio da Razão” (1955-56).
e.) Kant: “A questão da coisa” (1935-36); “Tese de Kant sobre o ser” (1962).
f.) Hegel: “O conceito de experiência em Hegel” (Apud Sendas Perdidas) (1942-43); “A concepção ontoteológica da metafísica” (Apud Identidade e Diferença) (1956-57); “Hegel e os gregos” (Apud Die Gegenwart der Griechen) (1958).
g.) Nietzsche: “A palavra Nietzsche: Deus está morto” (Apud Sendas Perdidas) (1943); “Quem é o Zaratustra de Nietzsche” (Apud Ensaios e Conferências) (1953); “Que significa pensar” (1951-52) e a obra em dois volumes “Nietzsche” (1936-1046).
–
1. (Toda a metafísica ocidental é problematizada em “A superação de Metafísica”), apud Sendas Perdidas (1936-1946).
2. Análise da obra de arte – “Da origem da obra de arte” (1936).
3. Análise do problema da linguagem – “Cartas sobre o humanismo”(1947); “Logos” (Apud Ensaios e Conferências) (1951); “Caminho da linguagem” (1950-1959). Algumas referências em “Nietzsche I-II”, “Superação da Metafísica”, “Da experiência do pensar” e em outros.
4. Estudos sobre a poesia – “Comentários à poesia de Holderlin” (… 1936-43). “O tempo da imagem do mundo” (1938); “Para que poetas” (1946); “Da experiência do pensar” (1947); “O caminho do campo” (1949).
5. Reflexões sobre a coisa – “A coisa” (1950); “Construir, morar, pensar” (1951); “Poeticamente mora o homem” (1951); “Que significa pensar” (Apud Ensaios e Conferências) (1951-1952); “A linguagem” (Apud A caminho da Linguagem) (1950); “O princípio da razão” (1955-56); “A questão da técnica” (Apud Ensaios e Conferências) (1953) (50).
As tentativas e ensaios de penetração nesses temas são, para Heidegger, os caminhos para as instâncias privilegiadas da cultura ocidental, em que o ser se des-vela e se vela como Er-eignis, acontecimento-apropriação.
4. CONCLUSÃO
Ao encerrar essa primeira parte, impõe uma conclusão paradoxal para toda metafísica: o ser é fenômeno finito. O ser como transcendental não mais se ancora no intemporal fundamento que a metafísica lhe consignará. Na ontologia fenomenológica de Heidegger, cuja progressiva problematização acompanhamos, o ser aparece no e ao Dasein como fenômeno – e só assim – e seu aparecer é finito. Isso, de certo modo, é motivado pela dupla estrutura ontológica do Dasein como transcendência e finitude. Compreensão do ser e ser-para-a-morte se conjugam e entrelaçam intrinsecamente como elementos constitutivos do Dasein.
Sob várias designações, esse entrelaçamento do ser-para-a-morte e residir na clareira (Lichtung) do ser, se manifesta no pensamento de Heidegger: Finitude e transcendência – ser mortal e receber a mensagem do sagrado – ser mortal e ser o espaço lúdico para o supremo jogo do ser.
Mas essa limitação do ser no seu aparecer não é limitação extrínseca. É o próprio ser que, no desvelar-se e valar-se, assim se manifesta, porque ele mesmo faz do homem o ser-para-a-morte que o compreende. É por isso que as duas finitudes radicalmente se diversificam. O Dasein é finito porque é um ser-para-a-morte. A finitude do ser e por ele provocada em duplo sentido. De um lado, porque o ser se destina a si mesmo ao homem que por ele pergunta e o deixa manifestar-se, sendo o ser mesmo a abertura, o “DA” no homem, de tal modo que, no homem, o ser se compreende a si mesmo finitamente. De outro modo, porque o ser suscita os entes para neles aparecer como em algo diverso dele. Essa é a finitude fenomenológica do ser como transcendental incondicionado, porque ele mesmo se condiciona em seu manifestar-se na finitude.
Todos os acenos de Heidegger ao ser dizem isso: “physis, ousía, lógos, pólemos, einai-nóein, denón, Ereignis”; na obra de arte, o ser se manifesta obrando, mas sempre historicamente de modo diferente; na poesia, ele é o sagrado que envia sua mensagem ao homem, mas nela mesma ele se mostra como o incompreensível, o supremo, o misterioso; na linguagem, fala o próprio ser, mas carente sempre de uma linguagem humana determinada; na essência da coisa, o ser dura como o mundo, sendo o desmembramento das outras regiões do ser que resulta na quaternidade: Mortais, Deuses, Terra e Céus.
O ser como transcendental vem assim totalmente liberado da herança metafísica. Ele domina todo o cenário da aparição dos entes. É o fundamento de tudo como abismo (Grund als Abgrund). Como fundamento de tudo, ele mesmo não é um ente e, por isso, não é Deus. Só é fundamento de tudo porque não é fundamento. Funda porque é sem fundo.
De nenhum modo esse ser pode ser elevado analogicamente ao infinito, como ser subsistente, como Deus. É por isso que, na ontologia fenomenológica de Heidegger, Deus não é buscado para ser fundamento e princípio, como acontece na metafísica ocidental. Deus continua sendo o transcendente, mas não fundamentando o ser enquanto transcendental. Ele é um ente, e a pergunta da nova metafísica, que agora é ontologia fenomenológica: “Porque há o ente em geral e não antes o nada?” vai além de Deus e pergunta também pela condição de possibilidade de Deus. A partir do ser, não há mais acesso a Deus por um movimento analógico, como na metafísica tradicional.
Eliminada a possibilidade de colocar Deus como fundamento do transcendental pela resolução analógica, como entra Deus na filosofia que, como fenomenologia, repõe a questão do ser em seu verdadeiro sentido?