Proscênio Filosófico.

Que o Eco das Grandes Obras ressoe em vós!

Juan David García Bacca, Um Grande Filósofo Independente | José Luis Abellán

JUAN DAVID GARCÍA BACCA é quiçá a mente filosófica mais poderosa de todas as que o exílio há tido na América e uma das primeiras figuras da filosofia espanhola de todos os tempos. No que se refere a sua preparação intelectual haverá poucas pessoas que cheguem ao nível por ele alcançado. As conhecidas palavras de José Gaos a este respeito creio que são inevitáveis; ei elas aqui: “um saber que se estende desde as línguas clássicas e as vivas principais para as matemáticas e a física das mais altas e recentes, desde a filosofia e a teologia escolástica até o resto inteiro da história da filosofia. Um sentido da literatura e da arte que é frequentemente incompatível com o talento necessário para chegar a possuir saberes como os acabados de se mencionar. Uma capacidade filosófica cujas minas de ouro efetuam ficando consignadas. É um dom, um dom de escritor, não somente inusitado em geral entre homens de ciência e ainda entre filósofos, que são espécie intermédia entre aqueles e os homens de letras, senão, em semelhante grau, inclusive entre os últimos”. E o resultado de tudo isso é este autorizado juízo: “Desde que anda pela América leva publicados um conjunto de volumes que movem a pensar que “assume o risco” de ser o espanhol mais digno do nome, que é renome, de filósofo desde Suárez”.

E ainda com ele tenhamos em conta que o citado juízo de José Gaos foi feito público muito antes que aparecesse o livro mais importante de García Bacca – Metafísica Natural Estabilizada e Problemática Metafísica Espontânea -, que, a meu juízo, constitui um dos livros de filosofia mais importantes publicados durante este século, que não é precisamente solto em tal tipo de publicações, e, desde logo, um dos mais importantes que nunca hão aparecido em castelhano.

Pelo que se refere não já a sua preparação intelectual, senão ao labor realizado por ele, a nome de traduções, antologias, livros, que o leitor pode ver ao final destas páginas, nos dá já uma medida suficiente de sua fabulosa atividade. e isto sem tem ainda em conta os cursos, as conferências e artigos numerosíssimos deste espírito profundo e abarcador como poucos.

Uma das facetas mais interessantes é sua valoração da tendência hispânica do que fazer filosófico, de caráter um tanto literário. Em seu livro Introdução Literária a Filosofia, que, por certo, tinha na primeira edição o significativo título de Filosofia em Metáforas e Parábolas, nos mostra a profunda unidade dessas com diversos textos literários. Por último, na segunda parte do livro, uma análise de A Vida é Sonho (primeiro da comédia, depois do auto sacramental) nos põe de manifesta que a filosofia estrita pode também expressar-se em moldes literários, como parece ser a tendência espontânea de nossos pensadores; e, em consequência, a necessidade de assumir e integrar um tipo de pensamento filosófico afim ao comum dos povos hispanicos, pois há ficado fora da tradição oficial da filosofia.

Em íntima conexão com a revalorização anterior está, sem dúvida, o magnífico estilo literário de García Bacca. A qualidade de sua prosa alcança um dos graus mais altos entre os pensadores de língua espanhola. Aqui também as palavras de José Gaos podem servir de paradigma: “Singularmente – nos diz – se destaca e é de destacar a arte, ou quiçá, mais exatamente, o natural garbo com que Garcia Bacca sabe servir-se das expressões mais castiçais para fazer surpreendentemente plásticas as ideias, os filosofemas. García Bacca passará assim ao alcance dos maiores pensadores da língua espanhola que figuram ao par entre os mais grandes escritores da mesma”. Por demais, com ele da este pensador um mentís (definitiva extrapolação) definitiva da idéia comumente admitida de que o espanhol não é língua própria para a filosofia, adaptando-se melhor a expressão literária. E, embora ele mesmo se manifeste de acordo com semelhante ideia, sua Metafísica é uma refutação definitiva de tal expressão. Nesta adequação de nossa língua à filosofia, o caminho que vai de Ortega a García Bacca não é precisamente deserto. Ortega y Gasset havia demonstrado que o espanhol era apto para a expressão filosófica, embora seus meios de sedução fossem demasiado líricos a forma filosófica estrita. O caso de García Bacca é a demonstração definitiva de que o espanhol está perfeitamente dotado para a filosofia e há dado ao traste com a opinião de que não se pode escrever rigorosamente filosofia em espanhol; sua prova irrefutável há consistido no velho e acreditado argumento de demonstrar o movimento andando.

O itinerário intelectual deste filósofo, espanhol de nascimento, embora venezuelano por naturalização, está marcado principalmente por uma atenção constante para a atividade científica em todos os seus ramos (desde a física ou a matemática até a estatística e a biologia) e, consequentemente, de um modo especial a filosofia da ciência. Seus primeiros títulos – Introdução à Lógica Matemática, Ensaios Modernos para a Fundamentação das Matemáticas, Tipos Históricos do Filosofar Físico, Filosofia das Ciências – já manifestam esta tendência, que não deixa de ver-se em sua produção dos últimos anos, entre cujos livros encontramos alguns títulos significativos, como Antropologia e Ciências Contemporâneas, Teoria da Relatividade, e a História das Ciências, que é um livro único em nossa história intelectual, pois constitui o primeiro intento crítica às ciências desde a filosofia, feito ademais desde os supostos originais e interessantíssimos de Garcia Bacca.

A Nova Metafísica de García Bacca.

Por demais, esta linha de atenção à ciência desde a filosofia culmina em seu livro mais importante, que já mencionamos anteriormente: Metafísica Natural Estabilizada e Problemática Metafísica Espontânea, livro que constitui o maior esforço intelectual de Garcia Bacca e que supõe um acúmulo de conhecimentos nada comum. Quiçá um olhar superficial a obra e o fato de não encontrar nela uma só citação, a parte o intento expresso do autor – isto é, de levar a prática o princípio de exclusão de toda autoridade em matérias filosoficamente empreendidas e tratadas-, nos inclina a pensar que se trata de uma filosofia racionalista e de tendência apriorística. nada mais distante da verdade; o autor se baseia sobre a experiência da realidade e sua filosofia supõe um conhecimento não somente desde Aristóteles a Zubiri, como ele mesmo diz, senão – o que assenta – de toda a ciência moderna, desde lógica simbólica e física atual até matemáticas, biologia e economia, como mínimo. A Metafísica de García Bacca supõe um aproveitamento de todo esse ingente acúmulo de conhecimento, se bem interpretados e elaborados desde um ponto de vista originárinalissimo, como veremos nestas páginas. Pois, o intento do autor é o de constituir uma metafísica atual que se encontre a altura da presente e possivelmente futura evolução do mundo.

Agora: a metafísica de García Bacca não é tal neste primeiro livro[2] senão simplesmente constitui os prolegômenos e introdução a uma metafísica como ele a concebe. Pois, em si mesma e como relação ao resto do pensamento filosófico se apresenta como uma obra total encerrada em si mesma. Está escrita em forma de fatos, como fenomenologia que pretende ser; em efeito, a obra é uma fenomenologia do mundo natural, e enquanto tal, se apresenta como “metafísica natural estabilizada”, pois, sobretudo, pretende ser base e fundamento de uma nova metafísica a que chama “metafísica problemática espontânea”. Desde este último ponto de vista a obra de García Bacca é um acúmulo de problemas e interrogações que contrasta com a forma de fatos em que se nos oferece: somente se assim podem compreender-se suas palavras: “Por estranho que pareça em toda a obra, não há nem uma só afirmação nem uma só negação. Prontamente não há nada que afirme ou negue, pois o autor, assim chamado, pretende escrever qual alta voz das coisas – do que de metafísica há já no mundo ao que lhe hão trazido, e que ele não há criado nem produzido”.

A obra está escrita, por conseguinte, e como dizíamos antes, em forma de fatos, como um balanço actuarial; a estrutura de suas expressões usuais – ainda antes de que… , me encontro já – não tem mais sentido que a indicação deste caráter fenomenológico. Ainda assim convém fazer constar que a expressão mais própria é essa mesma, pois em sua forma mais universal: ainda antes que… , nos encontramos já…, forma que se impõe a metade da obra, quando o autor nos faz cair metodicamente em conta de que fala como alta voz das coisas, de que o mesmo não é mais que máquina registradora – por assim dizer – de um estado metafísico do mundo. E todo ele por meio da palavra, que exerce aqui uma “função de acoplamento e coajuste imediato, táctil, entre palavra – alta voz do ser – e coisa mesa”. Isto é, que as palavras realizam aqui “função concreta, e não a de flutuante sintaxe correta”, pois todo o dito em palavras, com tal intenção, “nos remete aquilo de que as palavras brotam, em sua função de dizer o que as coisas são, e dizê-lo e dá-lo a palavra, ao ar, tão imediata, apertada e ajustadamente como a alta voz vai dizendo o que a agulha vai notando táctilmente nos micro-ranhuras do disco” [3].

A função da palavra se lhe impõe García Bacca sobre a forma de particular e não de indutivo, distinções que aclaramos mais adiante. Por isso diz: “Não sou eu quem fala, nem quem pode falar enquanto indivíduo; falamos todos, ao falar eu ou cada um. Falar não é função realizável pelo indivíduo, senão própria de particular. E antes de que possamos, os indivíduos, evitá-lo, estamos falando como particulares, como nós. Se trata de um fato primordial… Que vejo, que penso, que manejo…, é algo individualmente meu enquanto não o diga. Por dizê-lo, o dito jão não é meu individualmente. Estes são fatos imediatos do mundo cultural em que os homens atuais surgem” [4].

Metafísica como Transformação.

O autor fala, pois, nesta obra como particular, isto é, como membro da coletividade, e sua pretensão é oferecer uma metafísica do mundo artificial em que nos encontramos nós, os homens de hoje. Seus exemplos à base dos modernos descobrimentos da física ou da matemática indicam claramente esta intenção. Trata-se de instaurar a metafísica que exige a altura dos tempos e que é todo o contrário da metafísica clássica; frente ao caráter interpretativo desta, o caráter transformador da nova. A tarefa metafísica de García Bacca se apresenta assim como oposta a de Aristóteles; se este baseou sua metafísica em uma concepção natural do mundo, García Bacca quer indubitavelmente fazê-lo na concepção artificial do mesmo. Por isso, frente às categorias de natureza, essência, potência, faculdade, espécie, ordem, próprias do estado natural do mundo, García Bacca propõe as novas categorias de projetos, desígnios, possibilidades, mutações…, que parecem adequar-se melhor ao estado artificial.

Uma metafísica atual – de caráter eminentemente transformador mais que interpretativo e que quer dar razão do mundo artificial em que se move o homem de hoje – não pode consistir em uma arquitetura de conceitos bem articulador, senão em uma série de acontecimentos que colocam a realidade em um nível superior, justamente o metafísico ou o ontológico, entre os quais se distinguirá mais adiante.

García Bacca expressa sucintamente esta posição com as seguintes palavras: “Metafísica e Ontologia não são, primordialmente, conjuntos mais ou menos sistemáticos de conceitos; são: a-) acontecimentos; b-) que fazem cambiar o estado da realidade: de estado de realidade em bruto a estado metafísico e ontológico; o de ser e estar sendo o porque de tudo; c-) metafísico e ontológico designam, segundo isto, estados da realidade, em sentido parecido a líquido, sólido, gasoso, cristalino, polarizado… E pudera suceder, e sucede, que em um momento dado haja bem poucas em estado metafísico e ontológico, e que, verbigracia, fora do entendimento essa parte de nossa realidade bruta que se prestará mais facilmente a cambiar de estado: de entendimento-em-bruto a entendimento em estado metafísico e ontológico, como certos corpos passam mais facilmente que outros, e em maior parte que outros, do estado amorfo ao cristalino” [5].

Me parece que esta citação reveladora haverá sido já suficiente para que o leitor comece a entender duas coisas: primeiro, a importância extraordinária do pensamento que nela se insinua, e segundo, o pouco que a palavra metafísica tem que ver aqui com sua etimologia, ou com sua história, nem com tudo o que estamos acostumados a relacionar com ela. Pois o que nos interessa reter, sobretudo, agora, é a ideia da metafísica como acontecimento que faz mudar os estados da realidade e muito principalmente o estado de coisa em estado de ser, que é o supremo projeto metafísico: “Por todas as coisas em estado de ser, ao modo que a física moderna, o reconhecer a possibilidade de transformar toda massa em energia e toda energia em massa, permite empreender o problema e acometer o projeto de por todo o físico em estado de radiação ou tudo em estado final de massa material” [6].
Ser e Ter.

Agora: a compreensão de semelhante projeto metafísico requer um esclarecimento dos conceitos de ser e ente, segundo se expõe neste livro. A primeira indicação que nos faz García Bacca é o penoso e desagradavel do esforço dirigido a pensar o ser; é como pôr-se a ver com os olhos a luz sem ver nenhum objeto concreto. A dificuldade está em querer ver o transparente em seu estado de transparência, já que não resulta objetivamente por nós prestarmos obstáculo: a luz a vista e o ser a inteligência. Ser é, pois, segundo isto, tudo o que, sendo real, nos faz de obstáculo à inteligência, senão que atua com a função de trans… – transcendente, transporte, etc. -. Pelo contrário, ente é tudo o que constitui obstáculo para a nossa mente. Assim, diz: “Ser é ente em estado de transparência, frente e a respeito a inteligência; ente é ser em estado de intransparência, de obstáculo e obstante”[7].

O aprofundamento sobre a ideia de ser nos chama a atenção como seu intrínseco projeto consiste em evadir-se de tudo ao mesmo tempo que alude a tudo. “Ser é, e tem que ser – nos diz-, tudo o de todas as coisas; alusão máxima de ser a tudo e de tudo a ser. Mas ser não pode ser nada de nenhuma coisa – ser não é homem, ser não é número, ser não é ideia… -; ser é elusão máxima de todo ente especial Ou o que é o mesmo: ser não tem conteúdo algum, e ser tem tudo por conteúdo. Tem tudo como conteúdo aludido; e não tem nada especial por seu conteúdo eludente”. E alude mais adiante: “Ser, por seu intrínseco e ineliminável componente de elusão absoluta, é o módulo das coisas, ao modo que zero é o módulo da soma”. Uma consequência disto é que se bem o ser não é gênero, constitui o mais universal e simples dos conceitos.

Ideias-ser e Ideais-ente.

A fecundidade de um empreendimento semelhante se acrescenta quando o aplicamos ao mundo das ideias, as quais, por suas dimensões de alusão e elusão, não são algo fixo e independente, senão tudo o que de uma coisa qualquer se pode por em estado de ser, ou o que é o mesmo, em estado de universal, necessário e simples. As ideias se vinculam, pois, as coisas de que o são mediante uma alusão constante para elas; sua realidade é um fazer signos ou sinais para as coisas de que são ideias. Em definitivo, ideia é o que das coisas podem falar-se, em um momento determinado, em estado ideológico. Por isso García Bacca o chama o estado abstrato de uma coisa, isto é, seu extrato. Este extrato da coisa é ela mesma, embora não toda ela. Pois, há que ter em conta que não todas as ideias têm o mesmo componente de alusão e elusão, e por ele, existem diferenças muito marcadas entre elas; a mais patente é a distinção entre ideias-ente e ideias-ser. As primeiras são aquelas que fazem de obstáculo ou objeto a mente como as de cavalo, homem, parede, lápis, etc.; são ideias que excluem-se entre si. As segundas, pelo contrário, não tem um conteúdo próprio que se faça de obstáculo a mente; são ideias transparentes, que nos remetem natural e imediatamente as ideias-ente, como universal, necessário, simples… Não se percebe “universal”, senão que homem é um universal, como tampouco se percebe “temperatura”, senão que este corpo está a tal temperatura. A esta última classe de ideias pertence a ideia de ser, que é o protótipo de todas elas.

Sem dúvida, um malicioso conhecedor da filosofia estará pensando que tudo isto não é senão expressar com novas fórmulas ideias tradicionais arque-sabidas. Assim, a alusão e elusão seriam somente palavras novas para descobrir a velha doutrina de extensão e compreensão dos conceitos, e o que se diz do ser como módulo das coisas, seria uma forma engenhosa de expor a doutrina dos transcendentais; o mesmo ocorreria com as ideias-ente ou ideias-ser que teriam perfeito lugar dentro da doutrina dos universais. E não deixaria de ter razão quem assim pensa-se, pois somente até certo ponto, pois a formulação de tais doutrinas não é meramente caprichosa nem prurido de originalidade, senão necessidade de uma nova concepção da realidade que altera a significação de tais doutrinas. A alusão e elusão não são simples propriedades lógicas dos conceitos, senão que implicam a referência de seu sujeito a distintos estados do mundo, entendendo por tal um “todo em que rege peculiar repartição-e-coajuste das coisas entre os estados de ser e de ente”. Agora: este estado de repartição-e-coajuste entre ser e ente pode ser alterado em suas proporções pela intervenção do homem; daqui o novo sentido que adquirem tais expressões.

E não se trata somente da intervenção consciente e intencionada do homem, ao menos em princípio, senão que sua simples presença altera tais proporções nos estados de ser e ente. Pois a presença do homem no mundo supõe já o conhecimento, o qual constitui um novo estado de coisas: o estado de coisas conhecido. Estamos acostumados a tomar o ser objeto de conhecimento como algo inoperante, inofensivo, sem cair em conta de que ser conhecido é um estado real, embora sutil, da coisa conhecida. Um conhecimento autêntico transforma a coisa em coisa conhecida; a mudança real e verdadeiramente de estado [8]. Em uma palavra: o conhecimento humano faz aparecer o que de ser tenham os entes, alterando a repartição do mundo em seres e entes, e, em consequência, as dimensões de alusão e elusão das ideias. Uma consequência que se desprende de todo o anterior é que ser e ente são dois estados correlativos das coisas; que uma coisa não esteja em estado de ser o estará em estado de ente.

Pois, a função transformadora do homem que altera a proporção dos estados de ser e de ente entras as coisas abarca muitos mas aspectos, se bem podem concretar-se em dois tipos de operações: trocar “em” e trocar “por”, que constituem uma peça central no pensamento que expomos.

As operações trocar “em” e trocar “por”. Metafísica e Ontologia.

A operação trocar “em” consiste na transformação de um ente em outro, como, por exemplo, matéria em energéia, energia calorífica em mecânica, entes em calor ou radiações. E embora a realize de modo principal a física, não deixa de realizá-la a filosofia, como quando se cambia coisa em conteúdos de consciência, matéria em espírito, conhecimento sensível em conceito, conceito em ideia abstrata. Esta operação nos mostra a autêntica indiferença do real frente a ser e ente, indiferença ou neutralidade do real frente a ontologia (ser) e ôntica (entes). Por isso, trocar algo em algo é função metafísica e metaifenomenica; saber até que medida possa transformar-se tudo em ser, seria saber até que ponto teria êxito o projeto metafísico do homem. Em princípio, podemos estabelecer que tudo o que de um ente é transformável em tudo de outro ente, e vice-versa, embora os entes físicos sejam mais propensos a tal operação; o qual simplesmente indica que, se bem o trocável em é possibilidade real de todo ente enquanto ente, tal possibilidade admite graus e se acentua ao máximo nos chamados entes físicos.

A importância da operação trocar em, neste intento metafísico, não deve minimizar-se, pois aponta ao megalomaníaco afã do homem de transformá-lo todo, inclusive a si mesmo, em domínio total da realidade universal. Com tom poético e intenções literárias, parafraseando o famoso monólogo de Segismundo na Vida é Sonho, expressa García Bacca a transcendência da operação trocar em no prólogo a sua Introdução Literária a Filosofia. E aqui, a modo de exemplo, um de seus parágrafos:

Nasce o bruto…

Nasce o telefone; e mediante alguns estilizados carbonetos que bailam ritmicamente ao passo de uma corrente, transforma o homem o som em eletricidade e a eletricidade em som, o inaudível em audível; ensinando assim a humana destreza ao som em deixar de ser por um tempo audível e a eletricidade, naturalmente inaudível, a converter-se em audível; e a vida, que ao fazer tais prodígios ensina a inteligência e as mãos do homem, não inventará ela para si, no fundo de suas substâncias, nas profundidades onde opera sem ser estorvada pela vista e miradas indiscretas, onde não gasta em exibicionismo o que a vida sensitiva emprega em ser vista, uma maneira de união com corpo mais sutil que este que vemos, transformando uma parte de energia corpuscular visível ou pesado em energia luminosa de raios poderosíssimos e invisíveis, corpo novo que ela prepara para quando se lhe desmorone ou deixe desmoronar-se este corpo visível, audível, tangível? [9].

O filósofo que fala assim aponta a desacreditar a ideia de que o homem tem essência e que, em consequência, seja de “uma só maneira”; pelo contrário, a operação trocar em compreende também ao homem mesmo, e por ele aspira a liberar a vida deste tipo de corpo que atualmente possui e que pelo momento lhe define e aprisiona, ou a converter o corpo do homem, ao parecer condicionado em tempo e espaço, em outro supra-astral, etéreo, de alcance infinito e de importância universal… Sem dúvida, tais projetos, expressados em linguagem literários e postos em boca de um filósofo, hão de parecer fantásticos, pois se aludimos o testemunho de um científico quiçá o leite pense mais seriamente sobre o assunto. E aqui, pois, a opinião de Norbert Wiener, o criador da cibernética, sobre a possibilidade de projeção telegráfica de um ser humano: “A individualidade corporal é a de uma chamada, mais que de uma pedra, é uma forma mais que uma substância. Esta forma pode transmitir-se, modificar-se ou duplicar-se, embora no que diz respeito a este último somente sabemos fazê-lo a uma distância muito curta. Admitamos que não é intrinsecamente absurdo, embora esteja muito distante de sua realização, a ideia de viajar por telégrafo, ademais de poder fazê-lo em trem ou em avião… O fato de que não possamos telegrafar a estrutura de um ser humano de um lugar a outro parece dever-se somente a dificuldades técnicas” [10]. Estas declarações de um cientista de primeira linha seguramente não farão aparecer tão descabeladas as anteriores afirmações de García Bacca sobre as possibilidades da operação trocar em, em que se aposta a uma espécie de logro científico da imortalidade humana.

A operação trocar “por” consiste no simples câmbio de uma coisa por outra: um saco de batatas por tantas horas de trabalho… A operação de trocar “por” se dá pois, de modo prototípico na economia, se bem é um programa ontológico de fundo, posto que supõe a indiferença real a respeito das características físicas, individuais, biológicas e diferenciadores das coisas. Não é que tais características se aniquilem, senão que simplesmente passar a segundo plano; desaparecem como entes e passar a estado de ser, no que tudo é equivalente ou encontra coeficientes de equivalência. As coisas se convertem em mercadorias (bens), fazendo-se assim equivalentes, intercambiáveis e trocáveis umas pelas outras. O mundo em que nos encontramos é um mundo inventado (amonedado, cunhado), dominado por bens… e onde isto constitui modos de ser, não propriedades de entes. Por isso, considera García Bacca a moeda como o lugar privilegiado de aparição do que as coisas tenham de trocável por. “Moeda enquanto moeda – nos diz – é, portanto, estado de ser de um ente concreto – verbigracia, bilhete, cheque… – transformando de maneira que sua realidade seja mínima e aparece o mínimo possível, mas cresça, pelo contrário, seu poder de ostentar justamente o que de trocável por tem as coisas – algumas, prontamente, em intenção; em projeto todas-. Portanto, faz ressaltar (aparecer, função fenomenológica) o que de ser, de uma especial maneira de ser, de que se vai a falar imediatamente, tem os entes. E é a moeda invento ontológico muito parecido ao cronômetro, régua, termômetro, barômetro, que estão montados como lugares de aparição do tempo, distancia, temperatura, clima, respectivamente; pois, sem chegar a ter características metafisico ou transformador do físico” [11].

A descrição que acabamos de fazer entre ambas as operações nos permite já distinguir claramente entre metafísica e ontologia. E aqui a distinção tal como a descreve García bacca: “A ontologia compreende: a-) o que de ser tem os entes – que podem ser quantitativamente diferentes em diversos estados, mais ou menos ontológicos -; b-) aparatos ontológicos, isto é, realidades montadas segundo um plano inventado para fazer de lugar de aparição (fenomenológico) do que de ser tenham as coisas, todas ou algumas em princípio e projeto todas”. “A metafísica compreenderia: a-) todo tipo de transformação de ente ente; b-) de ser em ente ou de ente em ser; c-) instrumentos metafísicos, ou seja: realidades montadas segundo um projeto e desígnio inventados para fazer de lugar em que ente se transforma em ente, ou ser em ente ou ente em ser”[12].

A maioria dos métodos filosóficos – abstração total, formal, eidética… – são simplesmente ontológicos; enquanto algumas questões filosóficas são metafísicas de si, pois transformam o real – coisas em conceitos, por exemplo-, sendo seu fracasso o ficar em ontológicas. Em todo caso, tanto as operações de trocar uma coisa em outra como trocar uma coisa por outra são atividades que alteram a proporção dos estados de ser e ente das coisas, como havíamos previsto antes. No entanto, no mundo em que nos encontramos predomina a operação trocar por sobre a operação trocar em, e isto lhe dá uma maior consistência, unidade e ordem do que teria se ocorresse o inverso. Pois uma correta compreensão e interpretação disto exige que tenhamos a claro a noção de mundo e suas divisões.

Tipos de mundo: natural, artificial, artificioso.

Em primeiro lugar, recordemos a definição de mundo, que dizíamos antes, contudo que segue sendo válida aqui: “Tudo em que refe peculiar repartição-e-coajuste das coisas entre os estados de ser e de ente, repartição-e-coajuste estabilizado, unitonal, concluso” [13]. Pois, recordemos também que dita repartição-e-coajuste pode ser alterada também em suas proporções de ser e ente, o que origina três tipos principais de mundo: natural, artificial e artificioso, aos que dedicaremos atenção imediatamente.

Mundo Natural

O mundo natural é aquele que goza de máxima concreção e daqui a impressão imediata de estabilidade que dão às coisas em estado natural e por isso também seu estado de alusão máxima, e de elusão mínima, de todo a todo. O estado normal das coisas parece dar-se no mundo natural, se bem dita normalidade se manifesta sobre a característica ambígua de neutralidade, isto é, de indiferença a respeito de verdade ou falsidade – ciência, filosofia, religiosa… – determinadas, o que implica abstenção de juízo como o procedimento natural de dito estado.

A peculiar condição de mundo natural implica a distinção entre real e verdadeiramente real. A verdade natural – isto é, a do mundo natural – é dada como simplesmente real; por exemplo, o geometrismo como feito de aparência – não como teoria- é uma verdade natural frente a teoria da relatividade que seria verdadeiramente real. A verdade natural é, pois, uma verdade de tipo patência, que simplesmente denota manifestação ou descobrimento e, portanto, resulta neutral frente a verdade ou falsidade lógica e ontológica, como ocorre com o caso exemplar do geocentrismo, que, seja verdadeiro ou falso como teoria, não deixa de ser verdade natural como aparência e, portanto, é indiferente a sua verdade lógica ou ontológica.

Um caso que põe o dedo na chama é o da física clássica. Esta, enquanto é física fenomenológica e, portanto, natural, não há chegado a demonstrar, com verdade real, que é realmente verdadeira; posto que se dá ao nível do natural, sua verdade o é de patência e, em consequência, neutral as autênticas verdade e falsidade. Pelo contrário, a física moderna, chamada física atômica ou nuclear enquanto é ciência de transformação e transubstanciação do real real dado em real de verdade, constitui um legítimo projeto metafísico; suas afirmações são verdadeiramente reais por estar provadas, isto é, postas a prova, segundo um plano de transformação de aparências montada no metafisico. Aqui reside sua fecundidade e periculosidade para o natural.

Agora: este projeto de transformação e transubstanciação da natureza devia fazer-se pensar os filósofos, religiosos…, que somente em tal plano metafísico é possível provar sua verdade com realidade de verdade – sem deixá-lo para outro mundo, ou lá onde nos dão todas, ou a boa vontade de Deus [14] -. Os Planos de Interpretação da metafísica tradicional devem ser substituidos por projetos de transformação da nova metafísica, projetos que podem ir de intentos a atentados. Uma realização do qual nos leva ao mundo artificial, unido que pode dar-se.

Mundo artificial.

O mundo artificial pressupõe o invento de artefatos. E artefato é a mostração concreta de que uma propriedade ou função, inserta em determinadas conexões naturais, pode atuar separada de um contexto natural. Por exemplo, quando a função de voar das aves se separa de seu contexto natural e desenhamos uma ave que é todas as asas: o aeroplano. Agora: o simples projeto de construir artefatos que substituam as funções naturais de certas coisas é um projeto de si metafísico transformador e transmutador do físico ou natural. E isto supõe, por um lado, que a técnica moderna é ténica metafísica por desígnio intrínseco da mesma, e, por outro, que a metafísica atual somente tem sentido real de verdade como técnica, isto é, como invento que há que pôr a prova e que somente se demonstra colocando-a a prova.

O mundo artificial é, pois, nesta direção, um projeto do que nem sequer consta que seja possível, como tampouco consta que seja possível a metafísica atual. Isto não obstante para que se possam precisar as características do mundo artificial frente ao natural.

1-) Enquanto os artefatos do mundo artificial a nota que os distingue é a de ter perfil, isto é, forma e dimensões, claramente determinados, afinados e afilados, frente ao semblante próprio das coisas naturais – isto é, estrutura metricamente flexível-. A distinção salta à vista quando de ordem de relógio, avião, cadeira, oficina, fábrica… passamos a homem, cavalo, árvore, bosque, montanha…

2-) O mundo natural enquanto a um todo se oferece como espetáculo, onde reina neutralidade temporal e causal, frente ao aspecto próprio de fábrica do mundo artificial, se bem este não existe mais que como projeto e somente como realidade em determinados rincões do universo.

3-) A peculiar estrutura do artificial se destaca como montada para repouso ou velocidade frente a natural de quietude ou movimento. O repouso de um artefato é uma quietude artificialmente conseguida ou mantida, como a que pode ter um corpo sobre o nível do mar, a tais longitudes e latitudes geográficas, a tal distância do sol, etc.

O problema que se apresenta ao homem é o de se será possível montar todo o físico, o mundo natural inteiro, sobre um desígnio metafísico de tal classe. O intento pode resultar em um fracasso, pois ainda assim fracasso metafísico, no que o mesmo homem se vê comprometido. O homem artificial mais que assemelha-se ao animal racional de que nos fala a tradição, seria então um invento ou produtor de novo corpo e alma para si, a costa do natural de si. “E empreender de modo audaz esta direção é a aventura, boaventura ou malaventura da metafísica atual, a qual a aventura da física atômica é a energia atômica, bomba atômica, reator, motor… atômicos” [15].

Um estudo dos tipos de caudas e cadeias causais, – causas eficientes, eficazes, diretivas, ocasionais – leva a García Bacca a estabelecer o predomínio em física atual das causas ocasionais, delatoras de entropia do universo, segundo o qual é crescente o número de coisas na categoria de qualquer e o domínio de qualquerismo. Pois, um universo físico com predomínio de qualquerismo supõe um aumento da categoria do porque sim, isto é, da impossibilidade de dar razão de certas coisas e, portanto, um crescente desvanecimento da racionalidade do universo.

Agora: pela planificação da atualização das causas ocasionais e, por sua vez, um fazer render e potencializar as causas eficazes e diretivas, o homem se capacita para ser realmente transcendente e não somente transcendental, senão mais ainda, de razão de si e do mundo. A ambição fáustica do homem moderno logra sua formulação filosófica mais plena nesta obra de García Bacca, fazendo-nos patente, não sem estremecimento, o que a aventura do homem sobre a terra tem de blasfêmia. Em sua Antropologia Filosófica Contemporânea o expressa ainda com maior clareza: “A tentação moderna – nos diz – é no fundo do fundo o programa de ser deuses. No fundo do fundo, a humanidade está fazendo um supremo experimento: não o do ser semelhante aos deuses, que não dá para grande coisa, senão ser no fundo deuses em pessoas. Experimento, não simples teoria como até agora” [16].

Mundo artificioso.

O mundo artificial constitui uma primeira potenciação de concreto artificial, produzido pelo fato de que tudo é redutível a um material intercambiável segundo uma unidade unificante, da que todo o demais é um múltiplo fixo ou permanente. Se o mundo artificial estava regido pela operação trocar em, o artificioso o está pela operação trocar por, o qual quer dizer que nos encontramos em um mundo cunhado. A moeda não é somente é aqui uma unidade unificante, senão principalmente niveladora de diferenças e diversidades que em princípio não teriam porque concretar-se em moeda. Trata-se de uma unidade econômica, cuja função principal é a de ser omni-niveladora de diferenças, diversidades e qualidades, em suma, quantificadora.

Esta operação de trocar por desborda – ao menos pelo momento – enormemente a operação trocar em. Se pode trocar gato por lebre, se bem não se pode trocar gato em liberdade, e assim sucessivamente com muitas coisas, o que vem a corroborar a afirmação anterior. Na prática, podemos dizer que a operação trocar por é ilimitada, abarcando todas as coisas em princípio; “é operação cósmica, por constituição”, diz Garcia Bacca. E alude: “Se pode trocar qualquer coisa por qualquer coisa, mediata ou imediatamente – seja material, vivente, espiritual, científica, religiosa, social, artística, política… – sobre formas mais ou menos sutis ou descaradas – preço, salário, estipêndio, honorários, cargos, condecorações, dignidades… – Trocar por resulta operação superior a pagar, comprar, vender; nem tudo é, pois, comparável, vendivel, pagável…; tudo é trocável por; qualquer coisa se pode trocar por qualquer outra, ao cabo de uns passos.”[17].

Em resumo, trocar por é operação cósmica sobre cujo campo de ação não encontramos todos, e todas as coisas, ainda antes de que nos prevenhamos… E ela nos faz patente a bondade de uma coisa qualquer para todas as demais em respeito do homem. “A fenomenologia ou aparição – diz Garcia Bacca -, sistematicamente planejada e realmente executada, da bondade de todas as coisas para o homem se faz pela operação de trocar A por B; e não por uma demonstração teórica, abstrata e inoperante de que tudo é bom para o homem, ao modo que a prova de que todo ser é inteligível para o homem, para seu entendimento, se consegue pondo-o à prova, isto é, por um plano de adequar as coisas – sejam as que foram em si e para si -, com o entendimento, com seus projetos e desígnios, formas a priori…; que semelhantemente mostra que um filme é visível e se faz projetando-se em uma tela, aparato inventado justa e precisamente segundo tal desígnio”[18]. Agora: uma mostra de tudo o que supõe e implica a operação trocar por somente se logra quando a analisamos em sua estrutura própria de mercado, junto com as de casa e laboratório, se bem tal coisa requer previamente uma sumária revisão aos distintos tipos de realidade.

Tipos de Realidade.

A doutrina dos tipos de realidade preliminarmente dados há sido elaborada, como a maior parte das doutrinas expostas por Garcia Bacca, através de um largo e penoso esforço cujas pegadas podem encontrar-se em seus escritos; a formulação quase completa de tal doutrina a encontramos já em sua Antropologia Filosófica Contemporânea, se bem a luz de sua ideia de homem. Aqui sua aplicação é muito mais ampla; esboçamos suas características.

As categorias que nos vem ao encontro, por ordem sucessiva, são assim: uno-de-tantos, qualquer, particular, indivíduo é único.

As categorias uno-de-tantos, uno-de-tantissímos são numéricas e supõem, pelo mesmo, uma multiplicidade nivelada quantitativamente. Por ele, o fato de poder contar as coisas e de que sejam numeradas com números, isto é, com coisas exemplarmente cada uma una-de-tantas, e una-de-tantissímas e una-de-infinitas, é um aparato que delata o que de numeráveis tem, isto é, o que cada uma tem de una-de-tantas e una-de-infinitas. Assim, una-de-tantos, una-de-tantissímos…, é categoria típica do aritmético; e das coisas, na medida em que estão sendo aritméticas.

A categoria de qualquer corresponde a uno-de-tatos que tenha uma qualidade ou propriedade simplesmente porque sim, e com ele caracteriza o estado físico em que as coisas são indiferentes a ser ou não ser, ao número das que são ou não são e a maneira ou grau de sê-lo. Agora: a categoria de qualquer é monótona crescente, isto é, o qualquerismo se impõe desde os domínios físico e matemático a todas as demais ordens de um modo cada vez maior, afetando a tudo o que alcança em duas dimensões: como maioria, enquanto forma de universalidade correspondente a qualquer; como mediania, enquanto forma da necessidade peculiar a qualquer. Por exemplo, “se nós homens somos já em número suficiente para que se estabeleça a categoria de qualquer – cada um, sejamos já, tantissímos, uno, qualquer -, todas as qualidades humanas – religião, arte, sociedade, ciências… – se ressentiriam e estariam submetidas a um modo de mediania: o modo ou grau com que a maioria as possuía, e surgiram espontaneamente, sem mais com eficiência própria, propaganda, consignas, dogmas, catecismos, manuais, prontuários, opinião pública, maiorias políticas, noosfera: estado de mediania da tais propriedades ou formas como se encontram em maioria” [19].

A minoria contará cada vez menos frente a maioria, e é um tema de ontologia e metafísica difícil de elucidar se vamos ou não a aumentar o qualquerismo com a conseguinte introdução da categoria de qualquer. Um exemplo disto há sido a física atual, que frenta a clássica, se há visto obrigada a recorrer a categoria de qualquer em numerosos domínios. Pois, a mesma direção parece que se vai impondo no mundo humano, onde “ o levar estatísticas de tudo, contagem de maiorias e minorias, é sintoma da época atual, isto é, de que se impõe brutalmente a categoria de qualquer por ir aumentando o número dos que são, cada um, uno qualquer”[20].

A categoria de particular se aplica às coisas que se distinguem das demais sem que possuam uma positiva unificação interior, em cujo caso “a unidade está condicionada pelo modo ou procedimento de distinguir-se das demais”. Assim, o ar da habitação, a água deste vaso, deste rio…, é o desta habitação, a deste rio…, porque há uma realidade que exerce a função de separá-las” [21].

As sequelas derivadas dessa particularidade são várias e de distinta importância; nos interessa, sobretudo, ver que o falar conosco se impõe a todo homem que esteja sendo particular, qualquer, uno de tantos; é o tipo de linguagem em que está escrita a Metafísica de García Bacca, como vimos ao começo.

A categoria de indivíduo se aplica às coisas que sejam una em virtude da unificação própria e intrínseca, e se apresenta, pois, como caso complementar do anterior; não insiste demasiado o autor sobre esta categoria por ser a que há sido mais estudada pela tradição. O princípio de individuação tem sido estudado pelos filósofos sem cair em conta de que também deve atender-se aos princípios de qualquerização, de particularização, etc. Uma consequência do ser e sentir-se indivíduo é considerar-se como centro privilegiado de um mundo que flutua ao nosso redor; por isso diz García Bacca que o indivíduo está anti-relativisticamente instalado. E consequentemente, por sua vez, disto é a violência que o filósofo deve fazer para falar como particular, posto que a tendência inicial e espontânea nos leva a fala como indivíduos.

Um olhar ao interior nos permite distinguir a realidade desde o seguinte ponto de vista: “o domínio do matemático se caracteriza pela categoria de uno-de-tantissímos, não pela de qualquer nem pela de indivíduo; o domínio do físico, pela de qualquer; o domínio ou reino do vivente (biótico), pelo predomínio da categoria de indivíduo; a relação entre os domínios físico e vivente tem lugar mediante a categoria de particular” [22].

Agora: todos os distintos tipos de realidade – qualquer, particular, indivíduo – não constituem essências independentes, ordenadas como o gênero e a espécie, senão que podem constituir diversos estados de uma mesma realidade, encontrando-se distintas partes de um ser, unas em estado de individuo, outras em estado de particular, outras de qualquer…

A categoria de único é estudada pelo autor para mostrar-nos como ela não é possível nem falar. E observa-se que toda coisa realmente única é acusada, vindo a ser porque sim, em absoluta descontinuidade e novidade; poderá haver para ele pretextos, oportunidade ou condições, contudo não causas. Nestas circunstâncias o único se mantém simplesmente indicado, como uma tendência que sim se cumpre e se desfaz; é inapreensível pela razão e inexpressivo em palavras; se se expressa automaticamente eliminado. Por isso, posso pensar em eu como único, pois se o digo já há deixado de ser tal e entrou no mundo das abstrações. Se apresenta, por ele, como uma realidade metafísica e transcendente que elude o universal e o geral. E na medida em que intento por-me a ser eu mesmo e evadir-me do estado de mim, isto é, ser único, estou realizando nisso uma pequena metafísica.

Casa, Laboratório, Mercado.

Uma vez esclarecidos os distintos tipos de realidade podemos passar de novo a estudar com maior precisão as estruturas de mundo natural, artificial e artificioso sob o sentido nelas e o sentido delas, isto é, seus sentimentos e sentimentalidades[23].

Em primeiro lugar, o mundo natural se nos dá como um estado de neutralização frente à realidade-de-verdade; por ele, todas as teorias no estado natural fracassam não enquanto a declarar dita verdade, senão enquanto a transformar a verdade simplesmente real em verdadeiramente real. Pois a consequência mais importante de tal neutralidade é que o mundo se nos dá sob as sentimentalidades de casa, isto é, familiaridade, espontaneidade, confiança…

E a neutralidade ôntica pela que sentimos o mundo natural como morada nossa se amplia até o grau de neutralidade gnosiológica, pela qual toda teoria acerca do conhecimento humano aparece como algo carente de sentido ao estado natural, pois não se trata já tanto de que sejam verdadeiras ou falsas, senão – algo pior- que são impotentes a respeito de todo estado de realidade-de-verdade. O estado natural é, pois, de imediação concreta de tudo em um mundo que habitamos neutralmente com despreocupada familiaridade, do que temos feito morada habitável na sentimentalidade de casa ou mansão, quando aquela nos é dada com as sentimentalidades de confortável, ordenada, pacífica, segura…

Uma impotência semelhante das teorias do estado natural somente poderiam superar-se se fossem acompanhadas de uma técnica de transformação de transsubstanciação da realidade simples em realidade de verdade. Pois, tal intento somente poderia realizar-se em metafísica e de fato se realiza tomando como base as rachaduras e divisões que aparecem no estado natural e que conduzem ao mundo artificial. Daqui que sob as sentimentalidades de confiança, inocência, benção de bem aventurança, aparecem também como delatoras do transfundo de mansão, as sentimentalidades de expor, exposto, sobressalto…

O mundo artificial está montado no projeto de transformar o mundo natural do homem sobre a base dessas rachaduras e divisões que temos mencionada, que destroem a neutralidade do natural e fazem possível a metafísica. Entre tais fenômenos cita García Bacca os seguintes: nascimento, morte, crimes, raios X, desintegração, minerais raros, mutação, heresias e ismas, máquinas, fábricas, aparatos naturalmente prodigiosos qual o televisor, automóvel, avião, radar, cozinha eletrônica, “procedimento – alude, de verdade realmente verdadeira, qual método dialético frente aos métodos de estrutura natural, simplesmente real, como abstração formal total, etc.” [24].

O estado artificial somente pode viver-se como particular, como se desprende das sentimentalidades que nos invadem em sítios tais como cidade, fábrica, árvore, oficina…, embora não exclusivo deles, enquanto qualquerizados pelas situações de particulares com que são vividas. Eu vejo com meus olhos como indivíduo o que todos vemos como particulares. Por isso García Bacca diz: “Sou eu quem olha; somos nós que vemos; sou eu quem pensa; somos nós que entendemos; sou eu quem manipula; somos nós que trabalhamos; sou eu quem toca; somos nós quem damos um concerto…”[25]. E isto se verifica na palavra de modo irremissível, na que o nós está incrustado de modo essencial, já que a linguagem é função social por excelência.

É muito interessante a função que o autor concede à categoria de qualquer nó referente a dar razão real-de-verdade, como há ocorrido na física, de fenômenos para-psicopatológicos como telepatias, telecinesia, etc. “Fenomenos, de si, metafísicos – tão raro agora qual o são as emissões de partículas e raios gamma pelo urânio em estado de mineral em mina -. Contudo, assim como é factível condensar a forma de tais emissões e aproveitar sua energia em um reator atômico, em uma bomba atômica ou nuclear, cabe propor-se (por desígnios e projeto metafísicos) o projeto e desígnios de produzir tais fenômenos – raros (não frequentes) por agora no estado natural -, de desintegração espontânea da percepção e objetivação em estado natural” [26].

Estes fenômenos raros rompem a neutralidade do mundo natural e fazem entrar por ele ondas do trans-natural, que faz presente o que já temos de metafísicos, ainda antes de todo desígnio. Para ele o metafísico é um aquecimento, real de verdade, que rompe a neutralidade da morada e nos introduz no mundo em que nos sentimos como em laboratório com sentimentalidades de hospedaria ou hotel, em que não podemos evitar certa insegurança e desconfiança.

Um exemplo que poderia esclarecer ainda isto é a visão que teríamos de nosso corpo com olhos previstos de telescópio ou microscópio eletrônico; se pareceria muito a uma nuvem e céu estrelado. Este exemplo põe de manifesto a capacidade de objetivação de nossos sentidos. Meus olhos objetivam a realidade conformando-a; é sua própria estrutura a que provoca determinada resposta. E isto explica porque as coisas nos vem embora careçam de olhos; seu aspecto típico é a mirada delas faz para mim e para mim, ou melhor, para nós enquanto particulares.

Pela mesma razão “eu penso, embora somos nós que entendemos o inteligivel”, pois – o mesmo que no caso da vista inteligível não é o inteligível somente porque o entendamos, senão porque ele nos entende, embora não nos pense. E o inteligível nos entende porque habita – igual ao que a nós – a religião do ser, na qual se dá a palavra como função. Nós entendemos, pois, porque falamos, fazendo da palavra um intermédio verdadeiro e eficaz que desaparece e se eclipsa em função de tal. Por ele a linguagem não é instrumento, senão que nos vem dado em estado de ser, como algo transparente e transcendente.

Agora: o estado natural da linguagem constitui de modo imediato a morada do homem, se bem podemos por decisão metafísica mudar a base da linguagem em sua função significativa. Isto ocorreria quando recorremos às palavras em papel, disco, cinta magnetofónica, transpostas de um corpo a outro. Ainda mais, a linguagem natural pode elaborar-se artificialmente por meio de símbolos, formalizações, etc. E em todos esses casos o que se destaca é a neutralidade de quem fala e a quem fala; a linguagem fica, pois, em estado de se diz, donde por suposto, desaparece toda revelação e sentido pessoal. Por isso a linguagem se qualqueriza, ou com neologismos de García Bacca, se , trocando-se de Morada em Hotel e Hospedaria.

As sentimentalidades próprias de laboratório vivido como Hotel são, pois, a de ousado, atrevido, aventureiro…, sob as que se revela o sentido da metafísica como aventura de aventuras e empresa de empreendedores, habitadas por esperança, gozo e paciência. Agora: o sentido em tais sentimentalidades é o desígnio do homem de converter-se em empreendedor máximo, que se não há legado a ser motor, reitor e razão do universo, há começado a intentá-lo no domínio dos objetos físicos, biológicos, industriais, etc. O mundo artificial habitado como hotel nos remete a um tipo de casa artificial, servida por toda a classe de aparatos e instrumentos e na qual o homem se sente senhor do universo.

O grau de qualquerismo que supõe uma sentimentalidade semelhante alcança caracteres pavorosos para a sentimentalidade de mansão no tocando ao domínio atômico, onde os experimentos incluem uma margem de probabilidade maior que zero de que dão origem, porque, a uma reação em cadeia de incêndio a atmosfera ou contamine de germes radioativos a vida inteira do planeta. Os experimentos se projetam sobre a margem de probabilidade que podem ficar sobrecarregado, pondo assim a jogo toda vida, inclusive a humana, já que a vida entra em tais casos na categoria de una-de-tantas coisas em que se sobrevive será porque sim e se se morre será também porque sim, tratando-se-a como uma qualquer de tantissímas coisas que surgem e desaparecem sem razão.

E este mesmo exemplo pode servir para mostrar como no mundo vivido como hotel hão desaparecido as demonstrações ou provas clássicas da filosofia; se trata simplesmente de provar pondo a prova e, portanto, a desaparição de toda demonstração; o único argumento conclusivo, trás haver experimentado algo, é se resulta ou não resulta.

Agora: o mundo artificial baseado na operação trocar em tem uma esfera de efetividade ainda bastante limitada, que é superada pela amplitude da operação trocar por, que vimos anteriormente que nos descobria a bondade das coisas para o homem. Por tal bondade não pode estar baseada em meros desejos e aspirações, senão que necessita realizar-se pondo-a a prova. Por exemplo, não pode trocar dinheiro por papel diretamente, posto que este não se dá bem a primeira na natureza, e assim será necessário previamente trocar polpa em papel. Em uma palavra: que a operação trocar por tem que estar precedida pela operação trocar em; e a medida que aumenta esta, aumenta aquela, em consequência. Assim se cria um mundo de objetos que, frente ao semblante e perfil dos mundos natural e artificial, adquire cara manual por ser objeto de uso; das características próprias destes são os de mercadoria e o mundo que forjam é vivido como Mercado com sentimentalidades próprias de Hospedaria. Mercado se assenta sobre o mundo artificial, isto é, sobre laboratório, embora não tenha necessariamente que coincidir; e ambos tendem a crescer progressivamente invadindo todos os domínios, não somente do material, senão do espiritual, como ciência, cultura, religião, política, etc.

Entramos aqui em uma das partes mais interessantes deste interessante livro; se propõe García Bacca determinar como se repartem e coajustam ser e ente entre os mundos natural, artificial e artificioso. Em primeiro, tal distribuição está ele mesmo em estado natural, e por ele, se dá por coisa feita e que passa usualmente inadvertida de pura sabedoria (conhecida em sua pureza). No mundo artificial tal distribuição se dá através de aparatos especialmente desenhados – termômetro, pêndulo, eletrômetro, cronômetro, metrô… – que distribuem ser e ente e os coajustam. No estado artificioso se realiza, pois, também tal distribuição e coajuste por meio de um aparato fenomenológico-ontológico ao que chamamos moeda, que nos dá uma amostra de valor das coisas. As consequências que se desprendem de tal função da moeda são mais ou menos as seguintes:

a.) Que tem que ter uma minima realidade entitativa, sobre-passado o limite do qual a moeda deixa de ser tal e se converte em mercadoria que entra no mercado como qualquer outra; se a base entitativa de tal é apreciável se a reiterar da circulação para que conserve a função de saca amostras de valor de tudo.

b.) A moeda da amostra de valor de outras coisas; não da mesma, que carece de valor. Sua função é a de ser ser dos entes, pois ela mesma não é ente; tem função fenomenologia-ontológica.

c.) A moeda registra o valor das coisas, sacando uma amostra da bondade de todas elas para o homem enquanto qualquer…

d.) A moeda registra o valor momentâneo das coisas com suas múltiplas variações temporais, espaciais ou circunstanciais, originando o preço de cada uma delas.

e.) A moeda é um aparato que descobre a relação trocável por, isto é, o estado potencial da operação trocar por, que se manifesta sobre a aparência de dinheiro.

O fato é que nos encontramos em bondade ontológica, como nos encontramos em ser, com a diferença de que não tomemos um aparato que – como o dinheiro delata a bonificabilidade de tudo para o homem – delate o grau de ser de cada ente.

A potencialidade do provável pela frente ao ato de trocar por permite acumular uma certa quantidade de dinheiro, que tende a converter-se em capital, com as sentimentalidades correspondentes de “endinheirado” ou capitalista…

Agora: um mundo “amoedado” e “endinheirado”, como este, encontra aos mesmos nomes tipografado como operários e produtores em diversas especialidades; os homens, o mesmo que as coisas, resultam “vendidos” (cambiáveis) a pedaços ou peças pela especialização de seus trabalhos, de modo que os trabalhadores resulta duplamente especificados: pelos tipos de produtos e por cada uma das fases de fabricação de um produto. A conclusão a exporemos com as mesmas palavras do autor: “Esquartejamento do homem e de sua unidade pela unidade do produto traz prévia destruição da coisa natural para montá-la (reunificada) em máquina de produtos. Cem farão um só produto total; cada um dos cem, uma das tarefas adequadas a uma das fases do produto total e de sua unidade de montagem. O homem deixará de ser indivíduo de uma espécie (natural), e resultará, realmente, em qualquer de suas especialidades; o homem não terá já espécie, senão especialidade” [27]. Em uma palavra: o homem se converte em mercadoria, com a tendência a um tipo de bondade válido para o homem em estado de qualquer. Esta tendência para a bondade promediada (conduzida) ou medíocre, e onde o majoritariamente mediano é o mais provável, é o que García Bacca chama “lei da entropia economia”. E o mundo em que nos encontramos, crescente em número e, portanto, com predomínio da categoria uno-de-tantos e uno-de-tantissimos, faz com que a bondade vá baixando de qualidade, sendo dito crescimento da mediocridade cada vez maior.

Uma consequência importante de viver em tal estado monetizado e medíocre é a tendência para um mercado de preços onde precificado é um estado real como sólido, líquido e gasoso, consequência da haver quantificado as qualidades das coisas. Se este estado real é real-de-verdade ou simplesmente real é tarefa que a metafísica deve dizer, uma de cujas metas poderia ser transcender o econômico, embora apoiando-nos nele, assim como a metafísica começou por ser um desígnio de transcender o físico ou natural, apoiando-nos nele. E ainda “poderá suceder – diz García Bacca – que economico oferecerá, para uma transcendência, base maior e mais ampla que o físico, sobretudo mais que o físico sido e deixado ser como o simplesmente natural” [28].

Neste sentido, crê nosso autor que a meditação filosófica de nossos dias deve orientar-se para a economia moderna, assim como Kant a orientou em seu tempo a ciência físico-matemática com sua Crítica da Razão Pura, e Marx se converteu no filósofo da economia clássica. “Vendo Deus – nos diz – que os filósofos não haviam feito das filosofia senão campo de dissertações sobre o ser e não ser, princípio e causa, substância e acidente, sujeito e objeto, potência e ato, essencia e existencia…, se decidiu Deus a dá-la, face coisa de um século, a esquerda hegeliana, o materialismo dialético, quem fez o que se havia de fazer em filosofia: entregá-la ao povo, a humanidade, isto é, aos pobres, a seus problemas de vida ou morte, trabalho ou terra, classe e luta, vitória sobre alienação e despojo, objetivação e coisificação, economia e sociologia. E agora se passam a vida fenomenólogos, historicistas e existencialistas não precisamente rogam a Deus – qual não sucedem crer ou, ao menos, creem que Deus faz ouvidos surdos a tais características, tardias e insinceras -, senão tratando, um pouco vergonhosamente, de incardinar (incorporação clerical, jogo de sentido posto aqui) a seus sistema a problemática – ferozmente real e indigesta para suas ingestões (indigestas ao engolir) – de terra, trabalho, capital, alienação, coisificação, humanismo…, com vagas, não comprometedoras e bizqueantes (apertante cerrar de olhos, aperto de olhos) sociologias.” [29]. A esta linha pertence a Crítica da Razão Dialética, de Sartre, pois o que faz falta é o que com ele percam os filósofos atuais a vergonha de dedicar-se a estudar marxismo e economias modernas, a condição de que a história não lhes deixe de lado em “pequenas capelas, cenáculos, sacristias e nichos, ao redor de profetas do ser, de sintátiqueiros de palavras ou de diretores de orquestra com partitura dos tempos de canto gregoriano”. Nesta direção economia e de atenção ao marxismo há que incorporar a Metafísica de García Bacca, cujo título mais apropriado não seria este, senão o que temos posto como epígrafe desta páginas: Prolegômenos a uma “Crítica da Razão Econômica”, em cuja perspectiva se anunciam aos próximos e mais fecundos trabalhos de nosso grande filósofo.

As sentimentalidades próprias de Mercado vivido como Hospedaria são as de afã e adins de afã, o sentido das quais é o de prosperar por acumulação de dinheiro e o sentido sobre elas é alienação, enquanto que o homem perde suas qualidades de único, ficando assim expropriado. Por ele o afã que sentimos na situação de Mercado é ele de apropriação das qualidades perdidas. Há dois tipos principais de atitude ante tal método de apropriar-se qualidades mediante quantidade. A dos ricos bem vindos com tal método e a dos proletários ou indesejados com o mesmo, ainda sendo empresa perdida em qualquer caso. Pois, dominando tais vivências de Hospedaria, Mercado e inclusive Laboratório e Mansão são principalmente vividas pelo homem como dono e senhor enquanto toma consciência – por havê-lo posto a prova e tendo êxito – de uma transcendência que lhe eleva a categoria de Primeiro Motor do universo. Pois este Primeiro Motor nunca é, nem pode ser, embora assim o façam parecer as aparências, um indivíduo único e uno, senão todos os homens como totalidade. O que sentado em um guindaste comodamente maneja ou quem guia o auto com um dedo no volante…, podem sentir-se donos e senhores de ditas máquinas sem que o sejam realmente como indivíduo, senão como um qualquer dos homens que poderiam fazê-lo e pensando nos para os quais foi construída. “Monopólio e exclusividades – diz García Bacca – são os planos que tão somente são possíveis em intenção e desejos; realmente são fracassos infligidos pela realidade a todo homem que se cria em qualquer ordem onde haja o dono e o senhor do universo, o único primeiro motor do universo. A violência que para realizar tal intento se empregue e tem que manter-se constante e perenemente, constituí precisamente a prova real da impossibilidade real de monopólio e exclusividade do domínio de um único sobre os instrumentos a serviço do Homem enquanto causa eficaz e retorna da realidade das coisas” [30]. Uma consequência interessante disto é que a propriedade privada posta a prova é irrealizável pela impossibilidade da relação biunívoca de um (homem) e uma (coisa, una); daqui a violência a que apelamos para mantê-la e que pode tomar mil formas diferentes, sejam legais e reconhecidas ou não.

A preponderância do econômico para que no mundo artificioso, igual ao que antes víamos no artificial, aumente o domínio do qualquerismo ou porque sim, pondo de relevo o que o homem tem de animal omnipromediador, única forma de lograr o domínio sobre todas as coisas a que aspira. E o resultado é um mundo em que o homem está fazendo a experiência de ser espécie de do fracasso real-de-verdade de toda classe de monopólios – políticos, religiosos, filósofos, industriais- , apesar do intento constante de mantê-los; daqui que a unicidade do indivíduo seja simplesmente real e que seus produtos o sejam do Homem e não de cada um deles ou de cada um dos grupos, sociedades, monopólicos, etcetera, formados por eles.

Segundo García Bacca, o único Primeiro Motor, e Primeira Razão é o Homem enquanto universal concreto, isto é, enquanto uno de tantos e uno de tantíssimos, pois vivendo-se sobre a sentimentalidade de Dono e Senhor do universo, em cuja sentimentalidade vemos reaparecer essa aspiração a suplantar a divindade que já mencionamos anteriormente.

A metafísica de García Bacca se perfila, pois, como expressão das aspirações da grandeza humana a um domínio absoluto da realidade universal, tendenciosa a ser argila nas mãos do homem, intento que somente posto à prova poderá ser tirado saber se fracassa ou tem êxito. Em todo caso , é a aventura do homem sobre a terra a que, de forma fundamental original, vemos descrita neste fabuloso intento filosófico de que não temos dado senão uma mera ideia geral. Ficam a margem infinitos temas, sugestões inumeráveis, muitas questões de método e naturalmente a precisa exposição das ideias – modelo de domínio como de graça literária. Estas linhas – resumem o mínimo – não podem aspirar a outra coisa que a incitar a leitura direta desta como das obras de autor tão singular em nosso panorama filosófico.

Desde o encontro em que se encontrou o anterior, García Bacca tem seguido publicando interessantes livros até o dia em que morreu. É difícil resumir neste colofão o anterior estudo de todas as características e diretrizes que marcam sua impressionante obra; limitamos a assinalar algum deles, que nos parece definidor de sua postura. Entre suas muitas obras deste período não parece muito definitória a titulada Humanismo teórico, prática e positiva segundo Marx (1965), onde observamos a crescente influência que o marxismo exerce em suas últimas preocupações filosóficas. Quiçá neste filósofo se conjugam como em duas influências extraordinariamente sugestivas: a citação de Marx, e a de Antonio Machado,a quem também há dedicado um de seus últimos títulos: Invitação a Filosofar segundo Espírito e Letra de Antonio Machado (1967). A preocupação universalista de García Bacca entronca assim com uma tradição hispânica de recente fatura. Entre outros livros seus, temos de citar: Elogio da técnica (1968), Ensaios (1970) e Curso Sistemático de Filosofia Atual (1969). Este último vem a ser uma continuação de sua Metafísica (1965), e constitui, depois daquela, o livro mais importante do autor. Sua importância requer uma análise exclusiva e há vindo a corroborar sua significação ao monumental livro: Lições da História da Filosofia (2 volumes, 1972-73). A tarefa de García Bacca é precisamente dar explicação e sentido filosófico à empresa humana de ser homem, entendida como afã transubstanciação ou transformador do universo. Se a filosofia moderna teria já a transubstanciação, a atual está já intitulada na ação transubstanciadora mesma; neste sentido, coincidem filosofia e ciência atual, porquanto ambas tendem a uma humanização positiva do universo e a uma universalização positiva do homem. O caminho iniciado, pois, pela física atômica, se prolonga pela dialética marxista, no sentido de que ambas tendem a fazer do universo a morada própria do homem . Se no Curso Sistemático trata de explicar essa profunda ação transformadora nos planos da filosofia, a ciência, a história e a dialética, em suas Lições o faz García Bacca é mostrar-nos como essa é a direção própria de nosso tempo que nos marca a história da filosofia; daqui que o livro começa com Demócrito e termine em Marx, pois com este último, a filosofia deixa de provar, para pôr a prova real de verdade a possibilidade de um mundo humano, onde o homem deixe de ser explorado pelo homem e a natureza, transubstanciada pela técnica física, se faça posto no plano real de verdade a servir ao homem, a humanizar o universo. A luz destas considerações, não é difícil ver na metafísica de García Bacca, uma originalíssima interpretação do marxismo, que pretende dar razão ao enorme esforço que representa a façanha do homem sobre o planeta: a empresa de ser homem. Neste sentido, sua obra legítima filosoficamente a peripécia “prometeica” da espécie humana, frente ao resto do universo, falando-se por de cima de possíveis divergências ideológicas – tal é seu intento.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS DE JUAN DAVID GARCÍA BACCA

1901 – Nasce em Pamplona (Espanha)
Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Barcelona. Estudos de matemática e física na Universidade de Zurich. Cursos especializados na Universidade de Paris, Lovaina e Friburgo.
1932- Professor de Filosofia das Ciências e Lógica Matemática na Universidade de Barcelona
1939 – Professor de Filosofia na Universidade de Quito (Equador).
1942 – Professor na Universidade do México. Membro do Colégio do México.
1947 – É um dos professores fundadores da Faculdade de Filosofia e Letras na Universidade de Caracas. É decano da Faculdade de Humanidades e Educação há vários anos.
1947-62 – Professor do Instituto de Pedagogia.
1959 – Adquire a titularidade da cátedra na Universidade Central da Venezuela. Diretor do Instituto de Filosofia.
1962 – Membro da “Hispanic Society of America, Nueva York”.
1971 – Se jubila como professor e elege como lugar de residência uma casa do Valle de Tumbaco (Quito, Equador).
1982- A Biblioteca do Instituto de Filosofia (Caracas) toma o nome de “García Bacca”. Constituí a cátedra “Juan David García Bacca” na Faculdade de Humanidades da Universidade Central da Venezuela.
1992 – Morreu em Quito por uma breve enfermidade. Foi doutor Honoris Causa por várias Universidades (Venezuela, Lima, Complutense). Ao longo de sua vida foi objeto de numerosas homenagens, distinções e condecorações.

OBRAS DE JUAN DAVID GARCÍA BACCA
Livros
– Introducción a la lógica matemática, Barcelona, 1934.
– Ensayos modernos para la fundamentación de las matemáticas, 1934.
– Introducción a la lógica moderna, Barcelona, 1935.
– Invitación a filosofar, México, 1942.
– Tipos históricos de filosofar físico, Tucumán, 1942.
– Filosofía de las ciencias, México, 1942.
– Filosofía en metáforas y parábolas, México, 1945 (1.a edición).
– Introducción literaria a la filosofía (2.a edición, 1963).
– Nueve filósofos contemporáneos y sus temas, Venezuela, 1947.
– Disputaciones metafísicas de Alfonso Briceño, Caracas, 1955.
– Teoría de la realidad, 1956.
– Antropología filosófica contemporánea, Caracas, 1957.
– Gnoseología y ontología en Aristóteles, Caracas, 1957.
– Antropología y ciencias contemporáneas, Caracas, 1962.
– Existencialismo, México, 1962.
– Historia filosófica de las ciencias, México, 1963.
– Metafísica natural estabilizada y problemática metafísica espontánea, FCE, México, 1963.
– Humanismo teórico, práctico y positivo según Marx, FCE, México, 1965.
– Elementos de filosofía de las ciencias, Caracas, 1967.
– Invitación a filosofar según espíritu y letra de Antonio Machado, Mérida,
Venezuela, 1967.
– Curso sistemático de filosofía actual, Caracas, 1969.
– Lecciones de Historia de la Filosofía, 2 vols. Caracas, 1972-73.
– Cosas y personas, FCE, México, 1977.
– Antropología filosófica contemporánea, Barcelona, 1982.
– Antropología y ciencia contemporánea, Barcelona, 1983.
– Tres ejercicio literario-filosóficos de dialéctica, Barcelona, 1983.
– Tres ejercicios literario-filosóficos de economía, Barcelona, 1983.
– Vida, muerte e inmortalidad, Caracas, 1984.
– Transfinitud e inmortalidad, Caracas, 1984.
– Tres ejercicios literario-filosóficos de antropología, Barcelona, 1984.
– Tres ejercicios literario-filosóficos de moral, Barcelona, 1984.
– Pasado, presente y porvenir de Marx y el marxismo, FCE, México, 1985.
– Qué es Dios y quién es Dios, Barcelona, 1986.
– Tres ejercicios literario-filosóficos de lógica y metafísica, Barcelona, 1986.
– Elogio de la técnica, Barcelona, 1987.
– Pasado, presente y porvenir de grandes nombres (mitología, teogonia, teología,
filosofía, ciencia, técnica), 2 vols., México, 1988.
– De magia a técnica (Ensayo de teatro filosófico-literario-técnico), Barcelona, 1989.
– Nueve grandes filósofos contemporáneos y sus temas, Barcelona, 1990.
– Filosofía de la música, Barcelona, 1990.
– Sobre el Quijote y Don Quijote de la Mancha (Ejercicios literario-filosóficos),
Barcelona-Pamplona, 1991.
– Sobre virtudes y vicios (Tres ejercicios literario-filosóficos), Barcelona, 1993.

Antologías
– Antología del pensamiento filosófico venezolano de los siglos xvn y xvm, Caracas, 1953.
– Antología del pensamiento filosófico en Colombia de 1647 a 1761, Bogotá, 1955.
– Fragmentos filosóficos de los presocráticos, México, 1942 (2.a edición, 1964).
– Textos clásicos para la historia de las ciencias, Caracas, 1961.

Traducciones
– Platón, Diálogos, Introducción y notas de J. D. G. B., México, 1942-45.
– Aristóteles, Poética, México, 1944.
– Euclides, Elementos de geometría, México, 1944.
– Plotino, Enéadas, Losada, Buenos Aires, 1946.
– Jenofonte, Memorias y banquete.
– El poema de Parmenides, México, 1942.
– Plotino, Presencia y experiencia de Dios, notas de G. Bacca, Séneca, México, 1942.

Notas:
1. “Filosofía y literatura, según un filósofo español”: Sobre Ortega y Gasset y otros trabajos, pp. 173-174.
2. O autor nem sequer se compromete a escrever dita metafísica. Na primeira página de seu livro nos diz: “Esta obra não é o primeiro volume de uma obra total. Forma um todo, e os volumes que talvez venha cronologicamente seguindo, levaram um título que não se parecem – por razão, claro está, do conteúdo – a nenhum dos títulos esperados talvez pelo leitor: ontologia, metafísica especial, ontologia fundamental…”
3. Metafísica, p. 28.
4. Ibid., p. 273.
5. Ibid., pp. 60-61.
6. Ibid. p. 48.
7. Ibid., pp. 153-154.
8. Ibid., p. 127.
9 Introducción literaria a la filosofía, pág. 11.
10 M. Calvo Hernández, “La ‘tercera generación” de cerebros”: índice, n.° 193, febrero 1965.
11. Metafísica, p. 132.
12. Ibid.
13. Ibid., p. 158.
14. Ibid., p. 166.
15. Ibid., p. 208.
16. Antropologia filosófica contemporânea, p. 24.
17. Metafísica, p. 296.
18. Ibid.. pp. 297-298.
19. Ibid., p. 233.
20. Ibid.., p. 234.
21. Ibid.. p. 236.
22. Ibid., p. 243.
23. “Sentimental é um sentimento corpóreo que esta feito de, ou é de, um conjunto bem determinado de coisas e processos reais de diversas ordens; e que está sendo em sua encarnação de maneira total e indisposta; por exemplo, uma dor de dente”. (Ibid., p. 89)
“Sentimentalidades, por outro lado, são essas especiais realidades que nos voltam no universo habitável – como morada, hotel, hospedaria -, que fazem que estejamos sendo nas coisas por muito diversas que sejam – físicas, químicas, orgânicas, figuras, números… -, como em casa e troquemos real e sentidamente universo no mundo” (Ibid., p. 91).
Tantas sentimentos como sentimentalidades têm sentido, isto é, gozam de um significado, se bem os sentimentais somente nos descobrem o sentido nele, pois não ele sentindo dele, isto é, a realidade a que tendem ou nos descobrem. Esta é a tarefa metafísica a que García Bacca dedica uma importante parte de seu livro, mas que nós somente podemos aqui indicar muito sumariamente.
24. Metafísica, p. 270.
25 Ibid., p. 272.
26 Ibid., p. 274.
27 Ibid., p. 315.
28 Ibid., p. 327.
29 “Filosofía y economía”: índice, n.° 166, noviembre 1962.
30. Metafísica, p. 331.

Ernildo Stein - O Transcendental e o Problema de Deus em Martin Heidegger [Transcrição & Diagramação por Prof. Isaías Klipp]

Professor | Pesquisador
Fundador do projeto Proscênio Filosófico (2017). É Tradutor de textos filosóficos. Bacharel (2020) e licenciando em Filosofia (2022) pela Universidade de Caxias do Sul, UCS.
isaías klipp
Professor | Pesquisador
Licenciado em Filosofia (2021). É pesquisador na filosofia e obra de Vilém Flusser. Pesquisador voluntário junto ao CNPq, no Observatório de Educação da Universidade de Caxias do Sul, UCS.
luan moraes
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